terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Eco

A passagem das estações é como o eco de uma pedra na água parada, a ondulação alastrando em volta do ponto do impacto até desvanecer. O tempo concentrado nos Verões de infância, o centro absoluto a partir do qual se alargam os que se seguiram, até que a potência do primeiro Verão não seja mais que uma ausência desprovida de sentido.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Setsuko Hara

Setsuko Hara morreu em Setembro. Soube-se a semana passada, um rasto breve que passou pelo Facebook - assim foi. E eu achei que ainda vivia. Talvez tenha tentado escrever um ou dois textos sobre ela, e sobre Ozu. Mas são tempos de míngua, estes, e por isso não chegarão a viver, esses arremedos de qualquer coisa. Resigno-me à impossibilidade: nunca saberei escrever texto que faça justiça a um enquadramento de Ozu (com Setsuko Hara) e esta evidência conforta-me (só assim se vai persistindo, imagino). Era um rosto, apenas, iluminando o ecrã. Ainda ontem a vi, e era jovem, e vivia.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Caderno de encargos (10)

Lugares onde não posso ir, golpes que as mãos vão falhando, a noite vai-se cumprindo a rajadas de via sacra. Viso o sono com o meu arco dançante, ajeito a mira, estico o antebraço e falho uma vez mais, sabendo o voo da seta, sua trajectória, sabendo que apenas quando o impulso inicial extinguir-se e a seta cair no chão poderei dormir, oh, dormir encontrando nos sonhos não mais do que o reverso dos meus passos, o percurso feito de costas voltadas para o futuro, Janus de trazer por casa, doméstico e banal, conciliatório. Passo pelos corredores tolhido e mudo, curtido a medo e a certezas das quais preferiria não reconhecer o rosto. Alfaiates que preparam o dia para este final, tecem o tempo com a agulha torta, e o tamanho da roupa que me entregam é o errado, sempre  sempre. Onde não posso ir? A lugares que se perdem dentro dos meus sonhos, terraplanados por diabólicas máquinas, onde antes estava o pátio onde brincava está agora reboco, lixo, terra suja, memórias sem referente, esquecimento. Não posso ir, mas ainda assim regresso, e embato em muros de que não se descortina o topo, arde-me tanto a impossibilidade de os subir como os olhos que gritam por descanso. O meu arco tosco, de madeira agreste, aponta sempre o norte mas a vida está a sul, e eu não sou Janus. As fundações da casa não aguentam. E eu não voo.

sábado, 21 de novembro de 2015

Caderno de encargos (9)

Vazadouros, depósitos de lixo, descampados de almas. Somos atirados, e revolvidos por  garras de camião de lixo e mandíbulas de bulldozers até nos tornarmos simples memória do que fomos, farrapos prosaicos alimentados a comprimidos e e outras substância miseravelmente lícitas, amálgamas das quais não se distinguem contornos, músculos, objectos partidos, roupas e má poesia. E voltamos a ser alimento de animais ferozes, carniceiros, necrófagos debicando a carne até surgir a luz negra do osso gasto, seco e sujo. As gaivotas voam a pique, pousam e unem o seus grasnados numa ensurdecedora sinfonia, cacofónica, violenta, transporte à loucura. Batemos a cabeça contra muros que não estão lá, e ainda assim a agonia fermenta nas entranhas e sobe aos dedos, procurando nas palavras esboço de absolvição. Mas nem assim. Partimos para lá do que conhecemos, para lá do que nos pode conhecer, e nem a angústia faz sentido, nem o desespero celebra as coordenadas que poderão restabelecer o nosso território. Oh, por cobardia e pela simples inutilidade de tudo preferimos não o fazer, mas encostados à parede, o gume da espada beijando o pescoço, cedemos cobardemente, achando que a ausência de um mapa poderá ser a contento substituída pelos mapas que os outros poderão ter para nos oferecer. Não há linguagem mais violenta do que o nada que a linguagem não pode, nunca conseguirá explicar. Lugares vazios de tudo, inóspita solidão.

sábado, 17 de outubro de 2015

De pão e de certeza e do rumor do mar

De pão e de certeza e do rumor do mar

(quando chega o Inverno)

precisamos tanto quanto
do outro estamos famintos
e se no início do dia trocamos
o gesto exacto pela incerteza
do que julgamos saber
ou do que pensamos perder
quando apostamos na derrota
na queda a que chamo
a geometria decifrada do teu corpo
números secretos conquisto
e das águas tiro um rosto,
ao qual dedico mãos pés a linha cinza
do coração, entregue em tempos
a quem não a percebia,
a fronteira de penumbra, território
devastado, rasto de ruína
digno do esquecimento dos mortos
que tu, apenas tu, poderás retomar,
com o teu exército feito do claro

sol de um novo dia.

Caderno de encargos (8)

A dificuldade não é começar. É continuar. Começar e continuar. Persistir até que comece a fazer sentido, aguentar até que comece a surgir alguma forma da coisa caótica e desprovida de sentido que dá início a tudo. Mas o cansaço surge demasiado rápido. Não me ensinaram a esticar até ao limite as cordas do tecido, a fiar no vazio, sem perceber a partir da trama o resultado a que se irá chegar um dia. E eu nunca aprendi, nem talvez tenha querido a aprender, a fazer mais do que tentar. Admitir que este será talvez o meu maior defeito é dizer pouco. Talvez até nada dizer, sobretudo porque quem me conhece deverá saber quais os piores defeitos. A dificuldade é não continuar e a cada tentativa falhar. E retirar consolo do falhanço, ou pior, de nem tentar. Se nunca chegar ao fim do esforço, da tentativa, posso afirmar que nunca verdadeiramente falhei. Não sei que psicose ou que fracasso se pode chamar a isto. Mas a cada dor, a cada angústia, esta lâmina entra mais fundo. Sangrar continuamente, e ter pena dessa dor a que não consigo fugir. Não poderei ter perdão por ter fugido à tentativa. Um dia imagino poder quebrar o ciclo. Quando será tarde?

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Acto de Primavera


Aquele plano final de Acto de Primavera. O branco da amendoeira, o olhar de Manoel de Oliveira percorrendo as flores, por detrás o céu, azul azul. E outras cores, antes: túnicas carmesim, verdes, vermelho de sangue. O azul celeste de Maria. E as sombras de Caravaggio caindo sobre Jesus e os apóstolos, ao fim do dia. A câmara anda por ali, esperando o momento em que o real se transforma em ficção, em sonho. Da leitura de uma notícia mundana nasce, num lento deslizar caímos no sonho, e apenas o notamos quando nele estamos imersos. Somos figurantes de um acto de magia, o realizador leva-nos pela sua mão, e vivemos a vida de Jesus, a sua danação e morte - mas não a ressurreição, essa existe apenas fora de campo, para lá do real que nos ilude, é a flor de amendoeira do plano final. 
Homens que cavam a terra são os heróis do contra-campo. Mulheres que seguem os homens na sombra, a raiz que os suporta, a mãe de Deus e a mulher a quem Jesus amou. E colhem o trigo, e carregam aos ombros feixes de feno, e vão buscar água à fonte, pela verdura. A luz que os eleva ao reino dos Céus é a do olhar do homem que sorri para nós logo ao início, Manoel de Oliveira. O acto de Primavera, transfiguração da carne em luz, eternidade. Respira pelo cinema, vive através dele, e habita-nos. Resiste ao tempo.

Caderno de encargos (7)


Amigos, gostava de os ter vivendo a meu lado, como os fantasmas que são. Não aqui em casa, ocupando os lugares por onde me vou esquecendo, mas numa casa ao lado, a dois metros de distância, para que os pudesse convocar sempre que precisasse. Não quando andasse perdido nas tais profundezas de que fala o poeta 
(qual poeta? algum fala de profundezas sentindo-as mesmo, o ar tão distante como a palavra está de um surdo-mudo? saberão mesmo o que é cair, sem conhecer o fim à queda? ou fingirão apenas dor, e voz, e sofrimento, deitando sobre o papel a sombra que não guardam?)
não quando andasse tão errado sobre o que me dizem que achasse que cada corredor leva sempre a uma porta. Queria poder chamá-los quando cair fosse um relâmpago que me sacudisse de alto a baixo, uma permanência. E que não encontrasse o fio eléctrico que a sustivesse. Queria poder abrir-lhes a porta de casa, acender a luz como um terremoto e deixá-los entrar no corpo que desabito. E eu fosse um fantasma por momentos, a minha pele cobrindo da cabeça aos pés carne, nervo, músculos. E eu fosse um fantasma e entrasse em casa deles, passeasse pelas salas e descobrisse nas estantes livros de que nunca ouvira falar, títulos novos, filósofos desconhecidos. Que não reconhecesse o cheiro dos meus amigos, nem o eco das vozes abandonadas, nem as fotografias sujas de pó enfeitando a cómoda da sala. Que abrisse a janela do quarto e a luz entrasse, composta de moléculas acabadas de nascer, e no meu corpo de fantasma essas moléculas desenhassem uma alegria antiga.
E depois regressaria a minha casa, e eles à sua. Regressaria sabendo que sempre que precisasse poderia trocar de corpo e voltar, como uma mariposa reencontrando o seu casulo.

domingo, 6 de setembro de 2015

Caderno de encargos (6)

Acabei agora mesmo de escrever um poema. Não apontei a hora, não o fixei ao eixo do tempo. O dia também não. Um poema não precisa de dia nem de hora para estar pronto, julgo eu. Até que volte a pegar nele, está ali, repousando, ganhando corpo. Se for um vinho terá depósito. Se for uma laranja acabará por apodrecer. O verdete cobrirá as suas rugas, e o acre da podridão tomará conta da casa. Ele e os outros, fruta podre no recipiente de plástico, na cozinha. Nada de cristal, nem lugar de honra na casa. Plástico, singelo, a servir de depósito para o poema e para as suas metáforas. 
O poema que eu escrevi, regressou a mim depois de eu o ter deixado partir há uns tempos. Soltei-lhe a trela e ele, obediente, voltou e pôs-se a escarafunchar a porta. Chateou-me, o sacaninha, e não aguentei: deixei-o entrar. Apesar de saber que depois de o aceitar ele iria atazanar-me o espírito. Com a sua perfeita inutilidade, com a sua redundância escarninha, com a sua bela superfície espelhada reflectindo a soma negativa que o trouxe ali, ao cano da minha pistola. 
E agora que escrevo sobre isso, acrescento humilhação ao caso. Se fosse um detective seguindo uma pista, diria que suficientes indícios desta soma negativa só podem levar a uma conclusão, uma apenas. Mas não. Insisto. Mesmo sem saber como rir, escrevo poemas. Se os poemas fossem vinho, viveria feliz algumas horas. Mas nem isso, não são vinho. São apenas objectos inexistentes com os quais comparo o vinho, material e útil. Não têm corpo, nem cheiro, nem sabor. Não nos atiram para o esquecimento, antes nos puxam do sonho e nos deixam desamparados na realidade, como peixes desprendidos do anzol. 
Mas há um verso...

domingo, 28 de junho de 2015

Caderno de encargos (5)

Todos os dias, o sono trazendo a cegueira aos olhos, hesito na saída. Trago às costas o peso do cansaço diário. Julgo no entanto ser o único a ver o que por dentro cresce. O hábito antropológico de encontrar nos olhos dos outros a impossibilidade material, um muro espesso. Nos homens escamas crescem na pele; a carne sólida, as mãos soltas numa insuperável imobilidade, na ausência do álcool. O corpo capturado num movimento violento, a arte da prisão. A sombra irrompe dos olhos e torna-se a roupa suja que cobre o corpo. Não sou como esses homens que vão morrendo do cancro que lhe corrói as entranhas, mas sei que cedo ou tarde a luz se dissipará como uma voz na distância. Não preciso de enfermidades, vícios, tédio e loucura - tenho a modorra quotidiana, plena de razão absurda, como um sol ofuscando os caminhos que conduzem ao esquecimento. Uma membrana húmida alastra pela carne, e num momento tanto sou o fio de água que restou na poça como o fantasma de um pássaro gravado na retina. Atiro-me contra a cerca, na esperança de que a sólida gramática da morte me acorde. Mas o gancho que me puxa de volta ao presente, metafórico e sublime, prende a minha carne ao que não poderei ver. O sono é como um estranho que não deixo entrar em casa. Talvez não me reste mais do que isso: resistir ao imparável embate do tempo.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Caderno de encargos (4)

Não falamos do que nos interessa, perdemos o que nos trouxe aqui, as sombras estão presas no passado. Na conversas mentimos mais do que a marca desse rosto no espelho, ou a mancha deixada na mesa pela maçã roída de domingo à tarde, jornais de há três meses que ainda não estão amarelos e ecos de canções na rádio de um tempo antes de nós. Chama-se inventar uma história para caber no coração, ir criando as curvas apertadas que temos a certeza de nos terem trazido aqui. Ou acumular redundâncias numa caixa de cartão que guardamos na prateleira de baixo da mesinha de cabeceira, papeis velhos, recibos amarrotados e os comprimidos que salvámos para aquela ocasião em que o abismo nos olha de volta. 
No nosso medo calamos as certezas, mas o cansaço debate-se entre mãos, é uma montanha que não conseguiremos conquistar, nem que a vida durasse o suficiente para aprendermos a arte da escalada, do alpinismo, da poesia. Contra os olhos entregamos o resto de sangue que nos anima. E nas veias um denso arado abre os sulcos por onde há-de escorrer o presente, princípio de bolor e esquecimento.  
Não, de todas as palavras possíveis, é a que mais vezes nos aconchega. Uma conta-corrente que vem de muito longe, debitando possibilidades esgotadas, os futuros que arderam sem nunca terem chegado a existir, os que nunca vimos e no entanto viveram dentro de nós com a força suficiente para nos lembrarmos deles, o ímpeto da onda antes de ser cortada pela língua de areia para onde se atira. 
Não falamos nunca do que nos interessa, e não interessa saber porquê. Erramos o alvo, sempre, com fulgor e alegria - no intervalo da necessidade, na dobra da razão, habitamos. Sabemos o que somos aí.

domingo, 3 de maio de 2015

Poema encontrado no Facebook

Quem regressa a Portugal regressa ao medo
de falar sem alçapões de protecção
conventual, ao respeitinho pelos títulos
de borra, à timidez de protestar nas oficinas,
nos empregos, nos polés, nos hospitais.
Volta ao gozo bichaneiro da franqueza
pelas costas, ao bitate regougado
pela incúria, ao leve gás do palavrão
desopilante, pusilânime, vendado,
ao complacente desamor da liberdade.
Regressar a Portugal é regressar
ao desapego por direitos e deveres,
à indiferença pela história colectiva,
pelo que quer que sobrepuje o cá-se-vai
dum comodismo sem coragem nem prazer.
É regressar a horizontes de betão
e eucalipto, a frustrados atoleiros
de automóveis à deriva, ao fanico
de salários sobrevivos, mordaçantes,
ao cajado da lisonja e da preguiça.
Quem regressa a Portugal, regressa ao tempo,
sobretudo, da infância, que o lugar
já foi levado (não me canso de o dizer,
nem me conformo) pelo tufão da mais-valia
predial. Mas se o tempo da infância
cabe inteiro na memória, quem regressa
a Portugal, regressa a quê e para quê?

José Miguel Silva, in Erros Individuais, ed. Relógio d'Água 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Caderno de encargos (3)

Essa permanência de que falam os cientistas. A nova invenção: não existe tempo. Nem passado, aquilo em que julgamos acreditar, nem futuro, o que não pode ser conhecido. Apenas presente, fluindo e fugindo, caindo entre os dedos, imagem que não conseguimos fixar, chama trémula que não agarramos, mas queima. Aqui estou admitindo que o que me trouxe aqui não passa de uma ficção - agora, aqui estou eu afirmando que o que acabei de dizer não existe, ou que apenas existe por força de uma crença, tão absurda como em qualquer deus. Absurda, sim, mas não inútil. Esta crença que é a plasticina que molda o mundo, lhe dá consistência, e permite aceitar que os cientistas digam que todas as memórias que, com a força de uma torrente de primavera, me assoberbam o espírito, não existem. Porque o passado é feito de memória, se o tempo existe já não o conseguimos aceder, mas se não existe o que aconteceu não passou de um sonho. Um sonho: pensando bem, nele não existe o tempo; nem passado, nem futuro, apenas presente fluindo. Portanto, do que os cientistas falam é de um sonho, não da vida. Essa permanência que esvazia de sentido todo o gesto, toda a acção, todo o pensamento. 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Todos os que estão mortos

Quando um homem conhece outro homem
Procura-o
Não se esconde.

Não espera 
Por mais uma noite 
Com a mulher
Nem quer voltar a deitar as crianças.

Veste uma camisa lavada e um fato escuro
E vai ao barbeiro
Deixar que outro homem o barbeie.

Ele fecha os olhos,
Lembra-se de quando era um rapaz
Deitado nu numa rocha à beira da água.

Depois pede a loção especial.
Os velhos aproximam-se da cadeira
E o barbeiro deita um pouco
Em cada uma das mãos.

Frank Stanford, versão minha.

domingo, 22 de março de 2015

Caderno de encargos (memento)

Um dia fora de tudo o que me interessa. Um dia rodeado de livros mas sem pensar no que eles guardam – ou carregam. Escolhi a vida que tenho por subtracção, não por soma. Fui descontando ao desígnio as oportunidades, deixando que as opções se esbatessem antes que tivesse a possibilidade de verdadeiramente escolher. Não me posso queixar do que tenho; talvez não tenha nada de que me possa vir a arrepender. Mas essa desilusão, esse desencanto, essa permanente dor surda que me deixa de sobreaviso, esperando o que não pode ser esperado, acabando por nunca acontecer. Mais do que medo, um medo de que algum dia submeta ao vazio as horas que me foram dadas viver. E que acabe por perder no confronto as alegrias, subtis e efémeras, as que apenas se reconhecem quando se recorre à memória. E volto ao mesmo, a ferramenta que impele a escrita, quando à razão submetemos o julgamento das emoções, do que fomos sentindo, até chegarmos ao ponto em que apenas as palavras podem definir de forma nítida essa brevidade de uma sensação. A memória sobrevive, e talvez apenas ela nos permita continuar a fazer. Li que o mecanismo que nos permite prever o futuro é semelhante ao que nos faz recordar. Lembrar como se soubesse o que a manhã me trará, pensar no que serei apenas divisando o que agora sou, na impossibilidade de imaginar um outro. Um regresso à noite e a tudo o que me interessa. Algum consolo. Ausência de mim, e do corpo.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Caderno de encargos (arte poética 1)

O que nos chega aos olhos, e é processado, transforma-se no que nunca foi: pasto de palavras, metáforas que reduzem a cinza a matéria e o sonho, máquina produtora de redundâncias.
O que é está além do olhar que o vê, existe apenas fora do mundo e das palavras que o constroem. Há portanto três planos distintos, três camadas de realidade, e sabemos que nenhuma delas é real, nem material. O que vemos é tão tangível como o que pensamos, e o que pensamos é tão furtivo como o que dizemos. E depois decidimos dizer por outras palavras, como se, digamos, fossem duas estrelas de neutrões sugando tudo em volta, e no centro da sua dança pulsasse um vazio centrífugo por onde escoa a realidade. O escrito habita nesse plano intermédio, a zona atómica onde duas folhas de árvore intersectam a luz enganadora, vive na rocha onde assentam os pés, o lugar no qual começa a nascer a verdade, o que satisfatoriamente substitui a realidade.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Felicidade suburbana

A noite próxima, quando a gente chega a casa, cai uma calma sobre o bairro que limpa as ruas e os espíritos. Não falo de silêncio, nem de sono, mas de uma serenidade habitada pelos ruídos do costume, pelos hábitos diários e as urgências da necessidade. O pão que é preciso comprar na loja da esquina, ir buscar os filhos à escola, preparar o jantar de janela aberta, o cheiro a refogado enchendo os ares. As conversas de quem encontra o vizinho e precisa de alimentar os laços e as ilusões de proximidade enquanto se vai afastando, recuando, recolhendo ao engano do lar. O ronco dos carros a serem estacionados, o barulho dos pratos e das chávenas no café da esquina, o vento trazendo pela janela o odor distante de fumo que vem das vivendas. 
Há medos que espreitam, como sempre, todos os dias, todos os medos emboscados no caminho, e os poucos segundos que se transformam em minutos, minutos imersos nessa proximidade quotidiana e fingida, são as bóias que nos mantêm à tona. Nadamos entre escolhos, e vamos ao encontro de quem nos reconhece, mesmo que não saiba o nosso nome, nem de que sonhos somos feitos. Entre escolhos, resgatando connosco a verdade que vamos fabricando, chegamos a ilhas que não aparecem no mapa. 
A noite empurra o dia para o passado. Somos como um velho disco riscado, de cada vez que tocamos mais ruído de fundo produzimos. Mas as mãos que retiram o disco da capa, que puxam a agulha e a deitam devagar sobre os sulcos, as mãos, reconhecemos nelas o que somos, o seu cheiro, a pele porosa por onde se infiltra o amor. A mesma canção tocada tantas vezes, e nunca nos cansamos dela. Talvez um dia o bairro faça sentido. Cá dentro, a isso nos conduz, um sonho de quem nunca encontrou o lugar certo para dormir. 

segunda-feira, 9 de março de 2015

Caderno de encargos (2)

Perder a linguagem. De súbito, deixar de entender que o um, a unidade, é a primeira forma, o início, o objecto a partir do qual nasce o sentido, o sentido em si. Uma amálgama de restos de palavras, princípio de frases, que vai tentando ordenar, estabelecer alicerces, construir um tronco à volta desse princípio. Do um nasce o entendimento, do eu tudo o que vem. O mundo não existe fora das palavras que o descrevem. O horror é o muro da linguagem abater. Puro desespero, quando o sentido do um, do eu, se escapa, como um pássaro doido que anseia a liberdade. O ser não é sem as palavras que o fundam, e quando estas falham apenas lhe resta não ser. 
Foi um tiro na noite, a caminho do sono. O mundo fugiu-lhe das mãos, acrescentando um grau mais ao desespero. Um tiro como uma ave voando, atingindo o nervo daquilo que é. O coração dispara com a força do tiro, a noite arde-lhe por dentro das pálpebras, e nenhum calor ou conforto, humano ou material, o salva. A noite, que apenas existe porque ele a pensa com palavras - emergindo do caos das imagens - desaparece, e ele é apenas um corpo enrolado no abismo, olhos queimam e mãos repetem no escuro os gestos que permitem que o sentido recupere a respiração. Debaixo de água turva, densa e negra, tenta ser. Tudo se revolve como um movimento de entranhas, precedendo a agonia. E vai, parte por aí, caos puro, sem uma palavra que o defina, e depois regressa, prendendo o crânio num tumulto de loucura. Sabe que apenas o poderá resgatar essa desvairada corrida, e por isso desata atrás do ténue rasto de verdade e de razão que as palavras guardam. Um rastilho na sombra e ele não tem o lume que o acenda, procura imerso na angústia a luz, a luz.
Agora que o recorda, as palavras são de outro, não dele. E parece nunca as ter vivido, apesar das imagens, dos vislumbres de um outro mundo. Ele não é quem perdeu a razão, é quem a cada frase a recupera. Ainda que na verdade ela deslize, desapareça, não seja mais do que pó pairando no fim de tarde. Vai perdendo, vai ganhando, sem nunca conquistar o território. Talvez a língua não baste, não seja a arma certa. Mas é a única que tem. A única. 

sábado, 7 de março de 2015

Caderno de encargos (1)

O que fazer com um morto? O que fazer com as suas mãos, os seus olhos, os seus gritos? O que fazer com o seu corpo, para além de escondê-lo do mundo? Levá-lo a passear, mostrar-lhe as vistas? Pegar nas suas memórias e revirá-las, transformá-las no sonho que nunca se chegou a ter? Ou abrir-lhe o ventre, com a lâmina exacta, e expor-lhe as entranhas, como um peixe na lota? Escondemos a elegância do desaparecimento como se esconde guloseimas às crianças, sabendo que as crianças, mais cedo ou mais tarde, as irão encontrar. Porque o desaparecimento consiste em estar ali sabendo que o vazio que ocupará o lugar do corpo arde no horizonte, um devastador incêndio. Tão devastador que queima o presente e as suas ilusões, as suas certezas com sabor de algodão doce.
O que fazer com a voz de um morto, a que nos canta na noite as canções que recusamos ouvir? Julgamos saber que a música é um eco do que em tempos conhecemos, mas na verdade é apenas um sopro de sereia que conduz o barco em direcção aos penhascos. A música que nos chega dos mortos, as histórias que nos cantam, brilham com o cheiro da urze que renasce todas as primaveras nos montes. Mas depois apagamos as recordações como se fossem as linhas escritas a lápis no caderno de infância. E nas aparas de borracha vive o que vivemos, partículas que se desfazem na ponta dos dedos, transportadas na concha das mãos e atiradas para o lixo. E depois são recolhidas pelos homens que limpam as ruas pela noite.
As mãos de um morto, os dedos certos um dia, agora são galhos secos encolhidos na sua respiração. Pele sobre ossos, nódulos de carne ainda, sangue acumulado sob as unhas, brilhando na sombra de um dia. Traçando uma linha longitudinal do alto da cabeça ao vértice dos pés pousados no aço gelado, e abrindo, rasgando, escavando, vê-se o que se viu, o que se perdeu e o que não mais poderá ser visto. O rasgo rescinde da cabeça aos pés, e por ele se infiltram os caminhos desviados, as hesitações de percurso, os ódios acumulados como fuligem no coração, as trapaças de amor onde a alegria caía, os pedaços de papel com todos os nomes que não puderam ser carregados para a morte, as fisgas que o medo usou para derrubar uma e outra vez, vezes sem conta, o ar que em cada queda foi insuflado no corpo e a luz a cada manhã recolhida apontando o dia, a velocidade e o movimento impelido por ela, contra a inércia a impulsão, como um arco sobre o mundo. Com o sangue vai tudo, tudo o que apenas o morto lembra e agora já não lembra,
e alguém por ele o mata outra vez. Não sabemos o que fazer com a nossa imagem no futuro. E não reconhecemos no presente suficiente força no reflexo que nos olha de volta para nele fixarmos o eixo do abismo que ali está, a um passo apenas. Fazemos com um morto o que não podemos fazer por nós: esquecemos.