segunda-feira, 9 de março de 2015

Caderno de encargos (2)

Perder a linguagem. De súbito, deixar de entender que o um, a unidade, é a primeira forma, o início, o objecto a partir do qual nasce o sentido, o sentido em si. Uma amálgama de restos de palavras, princípio de frases, que vai tentando ordenar, estabelecer alicerces, construir um tronco à volta desse princípio. Do um nasce o entendimento, do eu tudo o que vem. O mundo não existe fora das palavras que o descrevem. O horror é o muro da linguagem abater. Puro desespero, quando o sentido do um, do eu, se escapa, como um pássaro doido que anseia a liberdade. O ser não é sem as palavras que o fundam, e quando estas falham apenas lhe resta não ser. 
Foi um tiro na noite, a caminho do sono. O mundo fugiu-lhe das mãos, acrescentando um grau mais ao desespero. Um tiro como uma ave voando, atingindo o nervo daquilo que é. O coração dispara com a força do tiro, a noite arde-lhe por dentro das pálpebras, e nenhum calor ou conforto, humano ou material, o salva. A noite, que apenas existe porque ele a pensa com palavras - emergindo do caos das imagens - desaparece, e ele é apenas um corpo enrolado no abismo, olhos queimam e mãos repetem no escuro os gestos que permitem que o sentido recupere a respiração. Debaixo de água turva, densa e negra, tenta ser. Tudo se revolve como um movimento de entranhas, precedendo a agonia. E vai, parte por aí, caos puro, sem uma palavra que o defina, e depois regressa, prendendo o crânio num tumulto de loucura. Sabe que apenas o poderá resgatar essa desvairada corrida, e por isso desata atrás do ténue rasto de verdade e de razão que as palavras guardam. Um rastilho na sombra e ele não tem o lume que o acenda, procura imerso na angústia a luz, a luz.
Agora que o recorda, as palavras são de outro, não dele. E parece nunca as ter vivido, apesar das imagens, dos vislumbres de um outro mundo. Ele não é quem perdeu a razão, é quem a cada frase a recupera. Ainda que na verdade ela deslize, desapareça, não seja mais do que pó pairando no fim de tarde. Vai perdendo, vai ganhando, sem nunca conquistar o território. Talvez a língua não baste, não seja a arma certa. Mas é a única que tem. A única.