domingo, 22 de março de 2015

Caderno de encargos (memento)

Um dia fora de tudo o que me interessa. Um dia rodeado de livros mas sem pensar no que eles guardam – ou carregam. Escolhi a vida que tenho por subtracção, não por soma. Fui descontando ao desígnio as oportunidades, deixando que as opções se esbatessem antes que tivesse a possibilidade de verdadeiramente escolher. Não me posso queixar do que tenho; talvez não tenha nada de que me possa vir a arrepender. Mas essa desilusão, esse desencanto, essa permanente dor surda que me deixa de sobreaviso, esperando o que não pode ser esperado, acabando por nunca acontecer. Mais do que medo, um medo de que algum dia submeta ao vazio as horas que me foram dadas viver. E que acabe por perder no confronto as alegrias, subtis e efémeras, as que apenas se reconhecem quando se recorre à memória. E volto ao mesmo, a ferramenta que impele a escrita, quando à razão submetemos o julgamento das emoções, do que fomos sentindo, até chegarmos ao ponto em que apenas as palavras podem definir de forma nítida essa brevidade de uma sensação. A memória sobrevive, e talvez apenas ela nos permita continuar a fazer. Li que o mecanismo que nos permite prever o futuro é semelhante ao que nos faz recordar. Lembrar como se soubesse o que a manhã me trará, pensar no que serei apenas divisando o que agora sou, na impossibilidade de imaginar um outro. Um regresso à noite e a tudo o que me interessa. Algum consolo. Ausência de mim, e do corpo.