segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Caderno de encargos (10)

Lugares onde não posso ir, golpes que as mãos vão falhando, a noite vai-se cumprindo a rajadas de via sacra. Viso o sono com o meu arco dançante, ajeito a mira, estico o antebraço e falho uma vez mais, sabendo o voo da seta, sua trajectória, sabendo que apenas quando o impulso inicial extinguir-se e a seta cair no chão poderei dormir, oh, dormir encontrando nos sonhos não mais do que o reverso dos meus passos, o percurso feito de costas voltadas para o futuro, Janus de trazer por casa, doméstico e banal, conciliatório. Passo pelos corredores tolhido e mudo, curtido a medo e a certezas das quais preferiria não reconhecer o rosto. Alfaiates que preparam o dia para este final, tecem o tempo com a agulha torta, e o tamanho da roupa que me entregam é o errado, sempre  sempre. Onde não posso ir? A lugares que se perdem dentro dos meus sonhos, terraplanados por diabólicas máquinas, onde antes estava o pátio onde brincava está agora reboco, lixo, terra suja, memórias sem referente, esquecimento. Não posso ir, mas ainda assim regresso, e embato em muros de que não se descortina o topo, arde-me tanto a impossibilidade de os subir como os olhos que gritam por descanso. O meu arco tosco, de madeira agreste, aponta sempre o norte mas a vida está a sul, e eu não sou Janus. As fundações da casa não aguentam. E eu não voo.

sábado, 21 de novembro de 2015

Caderno de encargos (9)

Vazadouros, depósitos de lixo, descampados de almas. Somos atirados, e revolvidos por  garras de camião de lixo e mandíbulas de bulldozers até nos tornarmos simples memória do que fomos, farrapos prosaicos alimentados a comprimidos e e outras substância miseravelmente lícitas, amálgamas das quais não se distinguem contornos, músculos, objectos partidos, roupas e má poesia. E voltamos a ser alimento de animais ferozes, carniceiros, necrófagos debicando a carne até surgir a luz negra do osso gasto, seco e sujo. As gaivotas voam a pique, pousam e unem o seus grasnados numa ensurdecedora sinfonia, cacofónica, violenta, transporte à loucura. Batemos a cabeça contra muros que não estão lá, e ainda assim a agonia fermenta nas entranhas e sobe aos dedos, procurando nas palavras esboço de absolvição. Mas nem assim. Partimos para lá do que conhecemos, para lá do que nos pode conhecer, e nem a angústia faz sentido, nem o desespero celebra as coordenadas que poderão restabelecer o nosso território. Oh, por cobardia e pela simples inutilidade de tudo preferimos não o fazer, mas encostados à parede, o gume da espada beijando o pescoço, cedemos cobardemente, achando que a ausência de um mapa poderá ser a contento substituída pelos mapas que os outros poderão ter para nos oferecer. Não há linguagem mais violenta do que o nada que a linguagem não pode, nunca conseguirá explicar. Lugares vazios de tudo, inóspita solidão.