quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Manoel de Oliveira

Numa curta e excelente entrevista que Manoel de Oliveira deu quando tinha 104 anos, confirma: "a vida é uma derrota". Já suspeitava que ele pensaria assim. Não só porque esse foi um dos temas perseguidos em vários dos seus filmes, mas sobretudo porque a resistência que o trouxe ali (aos 104 anos) apenas poderia ser um privilégio de um realista sem emenda.
Entretanto passaram-se mais dois anos. Quase. E com 106 anos, mais um filme feito, falado e a cores, estreia. Pensará, liberto numa lucidez de quem viveu o tempo necessário para ter certeza de que não poderá haver outra explicação para isto de por aqui andar, que esta foi mais uma derrota, mais uma entrega ao mundo onde não escolheu viver? Não queiramos entender os mistérios por onde se passeia o espírito de um velho nem os labirintos a que a alma humana se pode recolher. Estamos muito longe de viver assim, enredados nos filmes, na criação, do mesmo modo que uma criança cresce ligada ao cordão umbilical de onde foi violentamente desprendida à nascença. Mas é assim que o podemos perceber, partilhando esse lugar no passado onde fomos entregues à vida sem nada podermos contra ela. 
Um filme é como viver: movimento no escuro, memória breve de uma imagem na retina. Manoel de Oliveira sabe, como poucos. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Passados

Gosto de inventar passados.
Uma espécie de mentira, menos inocente
do que qualquer mentira branca,
mais importante do que as mentiras maiores,
as que se sopram na sombra.
Não conto histórias, não tenho imaginação para tanto.
Mas invento passados,
adianto ao passo do tempo uma volta mais,
e quando me lembro desses passados
que inventei, chego a acreditar, pelo menos
tanto quanto julgo acreditar que os outros me acreditam.
Um jogo perigoso, ensaiado às cegas entre
o fio das expectativas e a ilusão,
um jogo tão arriscado como um verso hermético,
preso das suas remissões e balanços,
das segundas leituras e das legítimas conclusões.
Invento passados e saio do esquema
simples aprendido na escola – não
mentir, nunca mentir – e que cedo percebemos
ser um engodo, um truque para submeter espíritos,
para que aceitemos as derrotas que nos esperam.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Estado da arte

Diferença

Não há único momento da vida que seja repetição de um anterior. Pode haver qualidades, motivações, palavras idênticas, mas nunca o mesmo acontecimento. Quem se entrega à rotina dos dias (quem não se entrega?) sabe que cada viagem empreendida exactamente à mesma hora do dia não é exactamente igual. Quando desaprendemos de viver, o tédio começa a instalar-se. É necessário voltar a olhar para os momentos similares como desiguais. Sentamo-nos no mesmo lugar na segunda carruagem do comboio, mas são outros passageiros que vemos. Aquela mulher que lê uma revista não é a mesma que ontem olhava discretamente para o reflexo na janela, ajeitando o cabelo. O homem brincando nervosamente com as teclas do telemóvel ontem não apanhou este comboio, ou talvez tenha apanhado mas escolheu outra carruagem. A paisagem não é igual. Ontem a chuva escorria arrastada pela velocidade, hoje uma clara luz atravessa o vidro, inundando os lugares e aquecendo os passageiros. Quando o comboio chegar à estação e as centenas de pessoas desembocarem, o rio será diferente do que foi ontem, do que será amanhã, do que será durante todos os dias que o comboio parar na estação quotidiana. O que trará mais felicidade, maior consolo ao coração? A familiaridade da repetição ou a diferença dos dias, à espera que sejam admirados cada um por si, sem qualquer grau de semelhança com o anterior ou o próximo? Que queremos nós, a ilusão da repetição ou a crua e bela verdade da diferença?

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Momento

Há quem viva por quem não quer viver.
Um homem de noventa e um anos procura com curiosidade um livro. Passos titubeantes, voz rouca e sumida, o peso da idade. Mas uma vivacidade clara no olhar, que o obriga a alimentar a curiosidade e a vontade de continuar a aprender. Sem hesitação, sabe (mas não diz) que poderá ter pouco tempo para os livros que tem em casa. Estantes cheias de sabedoria acumulada que não será apreendida. Por ele, talvez por ninguém mais.

(Os alfabarristas são os abutres dos livros. Esperam a morte do leitor e atiram-se aos despojos, comprando por tuta e meia preciosidades a filhos desprevenidos e multiplicando o valor material por mil. Matam a alma do livro, transformando-o em mero objecto, coleccionável e transacionável como um bem efémero.)

Enquanto por cá está, caminha, anda, e vê e procura o conhecimento. Não interessa o que saberá ou o que nunca poderá saber. Como no resto, importa manter vivo o caminho, os passos que o percorrem, em fundo a ténue chama da possibilidade, do ser.
Há quem viva por quem não quer viver. Quem recusa a sede do conhecimento nunca saberá o que é viver.

domingo, 7 de setembro de 2014

Uma margem de rio

De partida, ele disse:

“não há momentos absolutos
nem resguardos de verdade em cada conversa
se acreditares em mim e na minha religião
obscura,
sem deuses ou condenação perpétua,
mistérios ou amor infinito.

A verdade é uma garra que te persegue
mas o rosto que te ofereço não precisa
da sua chama e da ameaça,
oculta-se na dobra
de um lençol trocado pela manhã,
antes do café quente despertando o dia.

Sou o deus vivendo nos teus passos
a luz derramada nos teus medos,
a minha alegria estremecendo nos ossos,
pelo sangue, na saliva.
Amor, não o exijo,
apenas uma entrega, nítida como
uma margem de rio assoreada.

A ti, o ser que mata o nada.”

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Olhar

Há-de vir um tempo, novo ou não, em que olhar a Deus voltará a ser um acto de teimosia. Agora, procuram-no no intervalo, na interrogação, na dúvida. Não é pleno, nem certo, nem directo. O Deus castigador, pai eterno, tirano, foi substituído por benevolentes deuses ocidentais, inspirados por um zen new age que até o dogma católico abraça. "Deus é amor, é perdão", não está assim tão longe dos modos compassivos com que os deuses orientais (mais espíritos do que deuses, almas na natureza) olham para os humanos. Não precisam de ir ter com Deus, nem esperá-lo, porque na tentativa, na aceitação dos limites humanos, se encontra essa nova divindade, que dispensa orações, castigos, penitências. Chega-se a Deus pela reflexão, pela razão, e pela vida que tenta encontrar virtude no meio do caos. Não há Inferno já, apenas a ausência de Deus. Como se quem não acredita estivesse na verdade condenado a não viver. Não é esse o pior dos infernos?

terça-feira, 8 de julho de 2014

Uma recordação indecente

Chega o verão, regressa a luz clara e límpida. A que hoje chega diferente, e traz com ela promessas, mas também a vaga da memória. 
No outro dia, não sei a propósito de quê, uma recordação começou a bailar na cabeça, e foi ficando, até obrigar-me a pensar sobre ela, reescrevendo-a, inventando o que nunca aconteceu.
Eu teria talvez uns quatorze anos, e no verão ia de bicicleta para a praia, eu e a malta toda lá da rua, cinco ou seis, pela estrada do campo. Levávamos canas de pesca, cigarros comprados por um irmão mais velho, o anseio de um verão infindável. Dez quilómetros, da rua até à praia, pelo caminho de terra batida que (ainda) acompanha o rio da aldeia até à foz. Umas vezes íamos para a praia batida pelo mar, outras para a praia fluvial, uma reentrância perto da boca que unia a água doce à salgada, uma baía no rio que enchia na maré cheia e mostrava lodo e detritos quando a água cedia. Chegávamos lá depois de almoço, a água pelos ombros, e mergulhávamos. Secávamo-nos na areia, canas secas por todo o lado, restos de redes emaranhadas de lixo, as ondas batendo ao fundo e subindo pelo rio, trazendo aos nossos pés o derradeiro assomo de movimento produzido pelo mar. 
Ela era irmã de um amigo, e seria mais velha do que nós dois anos. Foi apenas uma vez connosco - não sei porque não voltou. Não era bonita. Pele escura, muito morena, cabelos negros. Mas a promessa da idade já se cumprira no corpo. Usava um fato de banho azul claro, cavado nas coxas. E quando saiu da água e se sentou ao nosso lado, a púbis muito preta colava-se ao tecido azul claro, numa transparência que cruzou mais de vinte anos num instante, este em que a recordo sem nunca mais a ter visto, desde essa vez (ou outra depois, talvez?). Meteu conversa, perguntou-me coisas. Sorriu muito, do modo nada esquivo que eu ainda não tinha aprendido a detectar como sendo de sedução. Por isso, fui-lhe respondendo mal conseguindo desviar os olhos do triângulo púbico. Quando ficámos os dois sozinhos, tocou-me ao de leve no braço, levantou-se e voltou a mergulhar, sem mais. Não voltámos a ficar os dois sozinhos.
Agora não é mais do que um rosto desfocado, um corpo pleno, e a memória de um desajeitado desejo de adolescente. Uma recordação indecente, como no livro de Agustina Izquierdo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Fraude

Esconder a mão ganhadora na manga e perder a oportunidade de a usar; sem o timing certo, nem a fraude consegue salvar.

O tempo em que festejavam os meus anos

Nunca consegui reunir muitas pessoas no meu aniversário. Um grupo restrito, amigos poucos, os dedos de uma mão, esse tipo de coisas. Havia o constrangimento social, que me obriga a celebrar um dia que poderia ser como outro qualquer, mas também a alegria, claro; a alegria de estar reunido com pessoas que gostavam de estar ali, com pessoas de quem eu gostava.
Depois, vieram os anos, o lento peso do tempo sobrecarregando a vida. O grupo tornou-se ainda mais restrito, a família apenas - os amigos foram-se ou fizeram uma pausa, eu deixei de festejar e o sentido que procurava atribuir a uma data como outra qualquer transformou-se. 
Mas os anos voltaram a passar, e numa idade a que gostam de chamar de curva da vida (como se esta fosse uma perfeita circunferência), penso se não será o momento de voltar a celebrar com esse grupo mais largo (ainda e sempre restrito) de amigos. Não é importante? Talvez seja. Não estou já na idade de pudores e orgulhos juvenis, os anos tornaram-me um aspirante ao burguês que durante muitos anos dizia não ir ser. As coisas mudam.

(As pessoas não, House continua certo. Mas se as coisas mudam, as pessoas parecem mudar com elas, quando na realidade apenas revelam ser o que sempre esteve lá, em forma de crisálida.)

No tempo em que festejavam os meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto. Agora, que organizo os meus próprios aniversários, talvez essa felicidade, o desconserto da infância, pura e perdida no desconhecimento de si mesma, não passe apenas de uma memória fabricada. Agora tenho outra felicidade, frágil, presa por arames, sujeita a imponderáveis, arbitrariedades, ao seu final fixado no eixo do tempo. Como não posso ter a original, vou aproveitando a cópia. Mas, oh, há breves momentos em que ela vale tanto a pena. Vale mesmo. 

terça-feira, 1 de julho de 2014

Antes

No fundo, é como o homem que, lamentando-se da vida que leva, continua a correr em volta de uma árvore seca, trazendo uma corda atrás, enredando-se cada vez mais na trama que o prende à árvore. Julga a cada passo corrido que entreviu ao longe uma paisagem diferente, ou no céu uma nuvem que nunca por ali passara, mas acaba por descobrir que afinal simplesmente deu mais uma volta de trezentos e sessenta graus e voltou ao ponto de origem. Poderá correr muito, até ao fim dos tempos, mas não sairá do mesmo lugar. Mas antes que tal aconteça, deixará de poder correr ou olhar, capturado no seu próprio movimento. Se tivesse ficado parado, cativo da sua impossibilidade, da sua indiferença, viveria.

Não

Desde há uns tempos que a mão conduz as minhas frases para o "não". Começo e é essa a primeira palavra que escrevo. Como se o mundo começasse por uma negação, um espaço em branco que precede e devora tudo o que se seguirá. Depois corrijo e o "não" desaparece. Mas está sempre lá, como se ao meu lado se sentasse Bartleby, uma persistente lembrança de que por vezes é preferível ceder a esse "não". Bartleby resiste a ser, existindo como negação. Tão evidente que nem a ironia dessa evidência me tranquiliza. 

Aubade

I work all day, and get half-drunk at night.   
Waking at four to soundless dark, I stare.   
In time the curtain-edges will grow light.   
Till then I see what’s really always there:   
Unresting death, a whole day nearer now,   
Making all thought impossible but how   
And where and when I shall myself die.   
Arid interrogation: yet the dread
Of dying, and being dead,
Flashes afresh to hold and horrify.

The mind blanks at the glare. Not in remorse   
—The good not done, the love not given, time   
Torn off unused—nor wretchedly because   
An only life can take so long to climb
Clear of its wrong beginnings, and may never;   
But at the total emptiness for ever,
The sure extinction that we travel to
And shall be lost in always. Not to be here,   
Not to be anywhere,
And soon; nothing more terrible, nothing more true.

This is a special way of being afraid
No trick dispels. Religion used to try,
That vast moth-eaten musical brocade
Created to pretend we never die,
And specious stuff that says No rational being
Can fear a thing it will not feel, not seeing
That this is what we fear—no sight, no sound,   
No touch or taste or smell, nothing to think with,   
Nothing to love or link with,
The anaesthetic from which none come round.

And so it stays just on the edge of vision,   
A small unfocused blur, a standing chill   
That slows each impulse down to indecision.   
Most things may never happen: this one will,   
And realisation of it rages out
In furnace-fear when we are caught without   
People or drink. Courage is no good:
It means not scaring others. Being brave   
Lets no one off the grave.
Death is no different whined at than withstood.

Slowly light strengthens, and the room takes shape.   
It stands plain as a wardrobe, what we know,   
Have always known, know that we can’t escape,   
Yet can’t accept. One side will have to go.
Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring   
In locked-up offices, and all the uncaring
Intricate rented world begins to rouse.
The sky is white as clay, with no sun.
Work has to be done.
Postmen like doctors go from house to house.

- Philip Larkin -