terça-feira, 8 de julho de 2014

Uma recordação indecente

Chega o verão, regressa a luz clara e límpida. A que hoje chega diferente, e traz com ela promessas, mas também a vaga da memória. 
No outro dia, não sei a propósito de quê, uma recordação começou a bailar na cabeça, e foi ficando, até obrigar-me a pensar sobre ela, reescrevendo-a, inventando o que nunca aconteceu.
Eu teria talvez uns quatorze anos, e no verão ia de bicicleta para a praia, eu e a malta toda lá da rua, cinco ou seis, pela estrada do campo. Levávamos canas de pesca, cigarros comprados por um irmão mais velho, o anseio de um verão infindável. Dez quilómetros, da rua até à praia, pelo caminho de terra batida que (ainda) acompanha o rio da aldeia até à foz. Umas vezes íamos para a praia batida pelo mar, outras para a praia fluvial, uma reentrância perto da boca que unia a água doce à salgada, uma baía no rio que enchia na maré cheia e mostrava lodo e detritos quando a água cedia. Chegávamos lá depois de almoço, a água pelos ombros, e mergulhávamos. Secávamo-nos na areia, canas secas por todo o lado, restos de redes emaranhadas de lixo, as ondas batendo ao fundo e subindo pelo rio, trazendo aos nossos pés o derradeiro assomo de movimento produzido pelo mar. 
Ela era irmã de um amigo, e seria mais velha do que nós dois anos. Foi apenas uma vez connosco - não sei porque não voltou. Não era bonita. Pele escura, muito morena, cabelos negros. Mas a promessa da idade já se cumprira no corpo. Usava um fato de banho azul claro, cavado nas coxas. E quando saiu da água e se sentou ao nosso lado, a púbis muito preta colava-se ao tecido azul claro, numa transparência que cruzou mais de vinte anos num instante, este em que a recordo sem nunca mais a ter visto, desde essa vez (ou outra depois, talvez?). Meteu conversa, perguntou-me coisas. Sorriu muito, do modo nada esquivo que eu ainda não tinha aprendido a detectar como sendo de sedução. Por isso, fui-lhe respondendo mal conseguindo desviar os olhos do triângulo púbico. Quando ficámos os dois sozinhos, tocou-me ao de leve no braço, levantou-se e voltou a mergulhar, sem mais. Não voltámos a ficar os dois sozinhos.
Agora não é mais do que um rosto desfocado, um corpo pleno, e a memória de um desajeitado desejo de adolescente. Uma recordação indecente, como no livro de Agustina Izquierdo.