quarta-feira, 11 de março de 2015

Felicidade suburbana

A noite próxima, quando a gente chega a casa, cai uma calma sobre o bairro que limpa as ruas e os espíritos. Não falo de silêncio, nem de sono, mas de uma serenidade habitada pelos ruídos do costume, pelos hábitos diários e as urgências da necessidade. O pão que é preciso comprar na loja da esquina, ir buscar os filhos à escola, preparar o jantar de janela aberta, o cheiro a refogado enchendo os ares. As conversas de quem encontra o vizinho e precisa de alimentar os laços e as ilusões de proximidade enquanto se vai afastando, recuando, recolhendo ao engano do lar. O ronco dos carros a serem estacionados, o barulho dos pratos e das chávenas no café da esquina, o vento trazendo pela janela o odor distante de fumo que vem das vivendas. 
Há medos que espreitam, como sempre, todos os dias, todos os medos emboscados no caminho, e os poucos segundos que se transformam em minutos, minutos imersos nessa proximidade quotidiana e fingida, são as bóias que nos mantêm à tona. Nadamos entre escolhos, e vamos ao encontro de quem nos reconhece, mesmo que não saiba o nosso nome, nem de que sonhos somos feitos. Entre escolhos, resgatando connosco a verdade que vamos fabricando, chegamos a ilhas que não aparecem no mapa. 
A noite empurra o dia para o passado. Somos como um velho disco riscado, de cada vez que tocamos mais ruído de fundo produzimos. Mas as mãos que retiram o disco da capa, que puxam a agulha e a deitam devagar sobre os sulcos, as mãos, reconhecemos nelas o que somos, o seu cheiro, a pele porosa por onde se infiltra o amor. A mesma canção tocada tantas vezes, e nunca nos cansamos dela. Talvez um dia o bairro faça sentido. Cá dentro, a isso nos conduz, um sonho de quem nunca encontrou o lugar certo para dormir.