Tenho a garganta estrangulada. Deixa-me respirar pelo nariz, traz as aranhas para o nosso ninho, deixa-as tecer as suas teias por cima de nós, para que ao dormir possamos saber que outra vida existe para lá dos nossos sonhos. Não sabes o que trago desse lado, se as aranhas andaram lá comigo. Por vezes eu não sei também. Corrigindo: nunca sei. Nunca sei o que sonho, mesmo quando tento programar os sonhos. Sobretudo quando tento programar os sonhos. Nessas noites vagueio por lugares desconhecidos e os sons da nossa vida não entram nessas ruas, nessas cidades, nesses quartos onde o prazer se troca por dinheiro. Comigo as aranhas brincam, as aranhas respiram, com suas patas finas tecem teias por dentro dos pulmões e unem-nos às paredes húmidas da nossa ultrapassada filosofia. Há no entanto aquele ritmo antigo. Sabes, aquele ritmo sem percussão que se estende desde o primeiro sopro. Aquele ritmo que é apenas melodia, sem toque de tambor ou batuque de coração. Nas ruas dos meus sonhos eu não ouço esse ritmo. Mas sinto. Sinto nas ligamentos tensos pela corrida. Sinto no fole da teia que prende o pulmão esquerdo ou no bofe retesado pelos fios que a aranha pariu no meu pulmão direito. Sinto por dentro dos meus olhos, nos ligamentos que sobem ao cérebro, e nas têmporas que estremecem com todo o conhecimento do mundo. Só nos sonhos conhecemos o mundo, porque a verdade é o reverso da vida, e as aranhas sabem isso. Pobre filosofia a nossa, precisa de aranhas para se validar. Mas são tão breves, tão fulgurantes, apenas elas prendem a luz à morte, quando se perdem nos nossos sonhos. Tenho a garganta estrangulada pelo tempo, aperta cada vez com mais força. As aranhas passeiam-se por mim.
Aubade
Death is no different whined at than withstood. - Philip Larkin
quarta-feira, 3 de novembro de 2021
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
Um coração
Um
coração, pouco vale ou nada quase
Se
ao bater cada compasso dado falhe,
Se
não o tratares como uma certa frase
De
poema, uma canção familiar, detalhe
No
qual reconheças o que em tempos foste,
Seja
o reverso do que agora és, regulável,
Amena
figura perdida, alguém que goste
Daquilo
que se espera, macio e descartável,
Seja
o espelho que te procura, agudo e voraz,
Em
todas as manhãs, lentas, duras, iguais,
Contra
ti brilhando o rosto violento que te faz
O
que és agora e sempre, um entre os demais.
Preso
à batida seguinte, nesse passo suspenso,
Não
és mais do que morto respirando, nó tenso.
segunda-feira, 2 de maio de 2016
Caderno de encargos (11)
Não depende de ti acordares, e de cada vez que o fazes é como se uma membrana densa te envolvesse e não te deixasse respirar plenamente, empurrando-te de volta para o sono. Mas resistes a essa força invisível, e tentas com toda a tua vontade mover um braço, uma perna, estender os músculos, permitir que a sua função se cumpra, assentar os pés no chão, palmas duras no chão frio, e caminhar, aos tombos, em direcção à casa de banho. Mas depois voltas, não chegaste a sair da cama, o movimento é descendente mas sentes que trepas um penhasco vertical preso de finos fios, sem a ajuda de cordas nem de grampos, mãos procurando tenazmente segurar-se a cada saliência, reentrância, planta seca rompendo da rocha. O esforço é de tal modo violento que todas as veias do teu corpo se empertigam, sangue golfando, e o sangue cai das mãos, a pele rasgada pelo gume das pedras.
Toda a violência é no entanto intrínseca, vive em ti, não existe fora do modo como te pensas. Quem te olha de fora apenas vislumbra um corpo desistindo de si próprio, vacilante, sem nada que o anime. Ou então vê apenas a banalidade diária, repetida, a cada dia repetida sem memória do anterior, como se viver não fosse mais do que a soma dos momentos em que se existe solto de si próprio.
Seja qual for a medida dos outros, serás sempre diferente do que imaginam que és. Uma identidade difusa, a cada momento procurando concentrar-se em si mesma, e a cada momento diluindo-se como açúcar em água, tão perdida no mundo como absolutamente consciente de si, e da sua permanência quebrada, um vaso partido que nenhuma cola poderá voltar a unir.
Não depende de ti acordar, mas acontece, sem qualquer sombra de resistência. Focar a consciência nesse segundo escapando-se será talvez a tua última derrota. Mas disso dependes como da luz para ver. Ou será que vendo mais fundo nas sombras descobres o reverso de ti próprio, rompendo o abismo, comum rebento trazendo a Primavera?
sexta-feira, 22 de abril de 2016
Soneto coxo com cães
Falei dos cães pretos e sabias que falava
de metáforas. Dia a dia, vais somando
bizarrias, sabendo que amestrando
esse desejo, insidioso, não se salva
nem um gato nem um morto, esperava
que compreendesses: derrubando
a luz densa, de um golpe, misturando
sal e dor, a tal frase que eu estimava,
talvez nos retomemos, oh perdidos
que estamos há tanto, barcos soltos
enfrentado mar alto, empurrados
pelas ondas, somos assim sacudidos,
maré certa, hora definida, revoltos
vamos, loucos, certos, derrotados.
de metáforas. Dia a dia, vais somando
bizarrias, sabendo que amestrando
esse desejo, insidioso, não se salva
nem um gato nem um morto, esperava
que compreendesses: derrubando
a luz densa, de um golpe, misturando
sal e dor, a tal frase que eu estimava,
talvez nos retomemos, oh perdidos
que estamos há tanto, barcos soltos
enfrentado mar alto, empurrados
pelas ondas, somos assim sacudidos,
maré certa, hora definida, revoltos
vamos, loucos, certos, derrotados.
sábado, 9 de abril de 2016
As meninas, segundo Vélazquez
As meninas espreitam por cima das cabeças.
O pintor olha para nós,
mas as pessoas estão à nossa frente e mal
conseguimos perceber o sorriso irónico -
no momento seguinte ele é sério e
posa para a história, para todos os dias
em que as portas do museu se abrem e recebem
os escolhos da modernidade, turistas
de máquina fotográfica em riste
roubando a alma das meninas.
Talvez até já tenha sido escrito
um poema sobre isto - mas esse poema
não nos tinha aqui, olhando de volta
aquele centro magnífico de onde irradia
essa majestade de outrora, o corpo afastando-se
da tela, as damas e os anões da corte
num êxtase de inutilidade pomposa,
cão aos pés, derreado pela servidão
aos monarcas capturados pela sombra de um reflexo,
o rei espreitando a cena, curioso secundário,
e a imagem multiplicada do artista, sob
a ombreira ao fundo e em todos os quadros
dos seus mestres
cobrindo as paredes até ao tecto.
Mil vezes os turistas se repetem,
e aquele gesto solene do pintor e
os enigmas ocultos pela hábil mão
não são agora mais do que mil fotos perdidas
em discos rígidos de computadores,
vazio imaterial, presença estilhaçada.
Nada. Nada mais que nada.
O pintor olha para nós,
mas as pessoas estão à nossa frente e mal
conseguimos perceber o sorriso irónico -
no momento seguinte ele é sério e
posa para a história, para todos os dias
em que as portas do museu se abrem e recebem
os escolhos da modernidade, turistas
de máquina fotográfica em riste
roubando a alma das meninas.
Talvez até já tenha sido escrito
um poema sobre isto - mas esse poema
não nos tinha aqui, olhando de volta
aquele centro magnífico de onde irradia
essa majestade de outrora, o corpo afastando-se
da tela, as damas e os anões da corte
num êxtase de inutilidade pomposa,
cão aos pés, derreado pela servidão
aos monarcas capturados pela sombra de um reflexo,
o rei espreitando a cena, curioso secundário,
e a imagem multiplicada do artista, sob
a ombreira ao fundo e em todos os quadros
dos seus mestres
cobrindo as paredes até ao tecto.
Mil vezes os turistas se repetem,
e aquele gesto solene do pintor e
os enigmas ocultos pela hábil mão
não são agora mais do que mil fotos perdidas
em discos rígidos de computadores,
vazio imaterial, presença estilhaçada.
Nada. Nada mais que nada.
sexta-feira, 11 de março de 2016
Once upon a midnight dreary
Há dois dias que um pássaro canta lá fora. Quando as aves dormem, noite feita, para lá do seu meio irredutível. O que faz ele, a esta hora? Porque canta? Os outros pássaros, recolhidos no abraço das árvores, não ouvem. Ele anda desapegado, solto, canta sozinho não sabendo que a noite não foi feita para cantar. A primeira vez que o ouvi, achei que era a coruja do bairro; costuma caçar à noite, e pia no seu voo de rapina, antes de cravar as garras nos ratos do descampado atrás do prédio. Mas o silvo da coruja é diferente, soa breve e agudo; este eu pensei que poderia ser um pássaro diurno. Não conheço o canto das aves, ponho-me a adivinhar: pode ser um rouxinol. Pode bem ser um rouxinol, mas o canto é mais quebrado, curto. E se for um rouxinol, porque canta tão tarde? A hora deles nasce entre dia e noite, e aí vivem. Porque canta à noite este pássaro? Poderá ter enlouquecido, ou mesmo ter nascido perdido da razão? Que digo? Os pássaros não perdem a razão, são puro instinto. Voam e cantam porque os seus genes não lhes permitem fazer outra coisa. Mas cada espécie tem os seus hábitos, as suas horas, a sua dieta. Se não há razão, apenas determinismo genético, não pode haver descentramento, deslize da razão, loucura. Certamente um pássaro não canta de noite por ter enlouquecido. Porque está então lá fora, soltando os seus destemperados chilreios? Nevermore não é, nem eu procuro Lenore. O seu toque não é frio e tenebroso, não me tenta com visões do Inferno, evocando o rosto de uma morta. É um pássaro apenas, cantando.
Calou-se agora, um carro parou, alguém chegando a casa. E começa novamente. Um canto recolhendo o ladrar distante de um cão no seu novelo, que me entra pelo coração, tolhendo-o. Não preciso de razão para o entender. Apenas ouço.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016
sexta-feira, 29 de janeiro de 2016
Roleta russa
Pensas que podes esperar ai no pátio e que alguém eventualmente te abrirá a porta. Sem dizeres nada, sem tentares explicar que nem todos os barcos chegaram a horas, e nem todos partiram depois da noite cair. Sem dizeres nada, vi-te ali a contar as balas no tambor da pistola, quem sabe imaginando que eu iria aceitar o velho jogo de roleta russa contigo - hábitos antigos, desde que os dois vimos aquele filme do Vietname e sentimos nos ossos o vento frio que soprava da tela (ou do ecrã do televisor, já não sei bem). Talvez eu te imagine também, aqui dentro, bebendo o antídoto que fabricaste para a minha tristeza. Talvez eu te imagine, e a tua voz arda no fogo, o barulho da multidão que não conseguimos evitar entrando pela casa como uma vaga imprevista. Os lamentos de um sino distante ecoando na noite entram também, e eu encho o copo um pouco mais, e deixo-me embalar pela memória da música que ouvíamos quando jogávamos à roleta russa. Na casa e fora dela apenas existem vestígios de uma imprecisa falta, de uma necessidade subtil, impossível de satisfazer. Ainda me lembro do livro que me trouxe esta ideia, do seu lugar ao lado da cama, na mesa de cabeceira. E lembro-me porque tu também lá estavas, e lias outro livro qualquer, as tuas histórias de fantasmas ou de aventuras, não sei ao certo. E esta ideia ficou, sobreviveu, resistiu até ao momento em que te senti à porta de casa, no pátio, medindo os passos que te faziam voltar ao nosso passado. Mas espera; as sirenes do porto uivam ainda, e os barcos que chegam a horas entram pela boca do rio, vultos deslizando lentamente, sombras rompendo o nevoeiro até tocarem as tábuas do cais, e pararem. A tua espera não será interrompida pelo grito longínquo da cidade, podes ficar aí imaginando o momento em que eu te abro a porta, e tu entras, e colocas o cano da arma na têmpora. Um clique frio, e ainda outro, e talvez sobrevivamos mais um dia. Como os soldados do filme, na nossa cabeça a guerra não terá um fim, continuaremos a ouvir o chamado do trompete e o ribombar distante dos bombardeamentos, o canto próximo do corvo e o adejar das suas asas, a ameaça de silêncio. Se nada disseres, não te abrirei a porta.
terça-feira, 8 de dezembro de 2015
Eco
A passagem das estações é como o eco de uma pedra na água parada, a ondulação alastrando em volta do ponto do impacto até desvanecer. O tempo concentrado nos Verões de infância, o centro absoluto a partir do qual se alargam os que se seguiram, até que a potência do primeiro Verão não seja mais que uma ausência desprovida de sentido.
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