sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Roleta russa

Pensas que podes esperar ai no pátio e que alguém eventualmente te abrirá a porta. Sem dizeres nada, sem tentares explicar que nem todos os barcos chegaram a horas, e nem todos partiram depois da noite cair. Sem dizeres nada, vi-te ali a contar as balas no tambor da pistola, quem sabe imaginando que eu iria aceitar o velho jogo de roleta russa contigo - hábitos antigos, desde que os dois vimos aquele filme do Vietname e sentimos nos ossos o vento frio que soprava da tela (ou do ecrã do televisor, já não sei bem). Talvez eu te imagine também, aqui dentro, bebendo o antídoto que fabricaste para a minha tristeza. Talvez eu te imagine, e a tua voz arda no fogo, o barulho da multidão que não conseguimos evitar entrando pela casa como uma vaga imprevista. Os lamentos de um sino distante ecoando na noite entram também, e eu encho o copo um pouco mais, e deixo-me embalar pela memória da música que ouvíamos quando jogávamos à roleta russa. Na casa e fora dela apenas existem vestígios de uma imprecisa falta, de uma necessidade subtil, impossível de satisfazer. Ainda me lembro do livro que me trouxe esta ideia, do seu lugar ao lado da cama, na mesa de cabeceira. E lembro-me porque tu também lá estavas, e lias outro livro qualquer, as tuas histórias de fantasmas ou de aventuras, não sei ao certo. E esta ideia ficou, sobreviveu, resistiu até ao momento em que te senti à porta de casa, no pátio, medindo os passos que te faziam voltar ao nosso passado. Mas espera; as sirenes do porto uivam ainda, e os barcos que chegam a horas entram pela boca do rio, vultos deslizando lentamente, sombras rompendo o nevoeiro até tocarem as tábuas do cais, e pararem. A tua espera não será interrompida pelo grito longínquo da cidade, podes ficar aí imaginando o momento em que eu te abro a porta, e tu entras, e colocas o cano da arma na têmpora. Um clique frio, e ainda outro, e talvez sobrevivamos mais um dia. Como os soldados do filme, na nossa cabeça a guerra não terá um fim, continuaremos a ouvir o chamado do trompete e o ribombar distante dos bombardeamentos, o canto próximo do corvo e o adejar das suas asas, a ameaça de silêncio. Se nada disseres, não te abrirei a porta.