sexta-feira, 11 de março de 2016

Once upon a midnight dreary

Há dois dias que um pássaro canta lá fora. Quando as aves dormem, noite feita, para lá do seu meio irredutível. O que faz ele, a esta hora? Porque canta? Os outros pássaros, recolhidos no abraço das árvores, não ouvem. Ele anda desapegado, solto, canta sozinho não sabendo que a noite não foi feita para cantar. A primeira vez que o ouvi, achei que era a coruja do bairro; costuma caçar à noite, e pia no seu voo de rapina, antes de cravar as garras nos ratos do descampado atrás do prédio. Mas o silvo da coruja é diferente, soa breve e agudo; este eu pensei que poderia ser um pássaro diurno. Não conheço o canto das aves, ponho-me a adivinhar: pode ser um rouxinol. Pode bem ser um rouxinol, mas o canto é mais quebrado, curto. E se for um rouxinol, porque canta tão tarde? A hora deles nasce entre dia e noite, e aí vivem. Porque canta à noite este pássaro? Poderá ter enlouquecido, ou mesmo ter nascido perdido da razão? Que digo? Os pássaros não perdem a razão, são puro instinto. Voam e cantam porque os seus genes não lhes permitem fazer outra coisa. Mas cada espécie tem os seus hábitos, as suas horas, a sua dieta. Se não há razão, apenas determinismo genético, não pode haver descentramento, deslize da razão, loucura. Certamente um pássaro não canta de noite por ter enlouquecido. Porque está então lá fora, soltando os seus destemperados chilreios? Nevermore não é, nem eu procuro Lenore. O seu toque não é frio e tenebroso, não me tenta com visões do Inferno, evocando o rosto de uma morta. É um pássaro apenas, cantando. 
Calou-se agora, um carro parou, alguém chegando a casa. E começa novamente. Um canto recolhendo o ladrar distante de um cão no seu novelo, que me entra pelo coração, tolhendo-o. Não preciso de razão para o entender. Apenas ouço.