Lugares onde não posso ir, golpes que as mãos vão falhando, a noite vai-se cumprindo a rajadas de via sacra. Viso o sono com o meu arco dançante, ajeito a mira, estico o antebraço e falho uma vez mais, sabendo o voo da seta, sua trajectória, sabendo que apenas quando o impulso inicial extinguir-se e a seta cair no chão poderei dormir, oh, dormir encontrando nos sonhos não mais do que o reverso dos meus passos, o percurso feito de costas voltadas para o futuro, Janus de trazer por casa, doméstico e banal, conciliatório. Passo pelos corredores tolhido e mudo, curtido a medo e a certezas das quais preferiria não reconhecer o rosto. Alfaiates que preparam o dia para este final, tecem o tempo com a agulha torta, e o tamanho da roupa que me entregam é o errado, sempre sempre. Onde não posso ir? A lugares que se perdem dentro dos meus sonhos, terraplanados por diabólicas máquinas, onde antes estava o pátio onde brincava está agora reboco, lixo, terra suja, memórias sem referente, esquecimento. Não posso ir, mas ainda assim regresso, e embato em muros de que não se descortina o topo, arde-me tanto a impossibilidade de os subir como os olhos que gritam por descanso. O meu arco tosco, de madeira agreste, aponta sempre o norte mas a vida está a sul, e eu não sou Janus. As fundações da casa não aguentam. E eu não voo.
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
sábado, 21 de novembro de 2015
Caderno de encargos (9)
Vazadouros, depósitos de lixo, descampados de almas. Somos atirados, e revolvidos por garras de camião de lixo e mandíbulas de bulldozers até nos tornarmos simples memória do que fomos, farrapos prosaicos alimentados a comprimidos e e outras substância miseravelmente lícitas, amálgamas das quais não se distinguem contornos, músculos, objectos partidos, roupas e má poesia. E voltamos a ser alimento de animais ferozes, carniceiros, necrófagos debicando a carne até surgir a luz negra do osso gasto, seco e sujo. As gaivotas voam a pique, pousam e unem o seus grasnados numa ensurdecedora sinfonia, cacofónica, violenta, transporte à loucura. Batemos a cabeça contra muros que não estão lá, e ainda assim a agonia fermenta nas entranhas e sobe aos dedos, procurando nas palavras esboço de absolvição. Mas nem assim. Partimos para lá do que conhecemos, para lá do que nos pode conhecer, e nem a angústia faz sentido, nem o desespero celebra as coordenadas que poderão restabelecer o nosso território. Oh, por cobardia e pela simples inutilidade de tudo preferimos não o fazer, mas encostados à parede, o gume da espada beijando o pescoço, cedemos cobardemente, achando que a ausência de um mapa poderá ser a contento substituída pelos mapas que os outros poderão ter para nos oferecer. Não há linguagem mais violenta do que o nada que a linguagem não pode, nunca conseguirá explicar. Lugares vazios de tudo, inóspita solidão.
sábado, 17 de outubro de 2015
De pão e de certeza e do rumor do mar
De pão e de certeza e do rumor do mar
(quando chega o Inverno)
precisamos tanto quanto
do outro estamos famintos
e se no início do dia trocamos
o gesto exacto pela incerteza
do que julgamos saber
ou do que pensamos perder
quando apostamos na derrota
na queda a que chamo
a geometria decifrada do teu corpo
números secretos conquisto
e das águas tiro um rosto,
ao qual dedico mãos pés a linha cinza
do coração, entregue em tempos
a quem não a percebia,
a fronteira de penumbra, território
devastado, rasto de ruína
digno do esquecimento dos mortos
que tu, apenas tu, poderás retomar,
com o teu exército feito do claro
sol de um novo dia.
Caderno de encargos (8)
A dificuldade não é começar. É continuar. Começar e
continuar. Persistir até que comece a fazer sentido, aguentar até que comece a
surgir alguma forma da coisa caótica e desprovida de sentido que dá início a
tudo. Mas o cansaço surge demasiado rápido. Não me ensinaram a esticar até ao
limite as cordas do tecido, a fiar no vazio, sem perceber a partir da trama o
resultado a que se irá chegar um dia. E eu nunca aprendi, nem talvez tenha
querido a aprender, a fazer mais do que tentar. Admitir que este será talvez o
meu maior defeito é dizer pouco. Talvez até nada dizer, sobretudo porque quem
me conhece deverá saber quais os piores defeitos. A dificuldade é não continuar
e a cada tentativa falhar. E retirar consolo do falhanço, ou pior, de nem
tentar. Se nunca chegar ao fim do esforço, da tentativa, posso afirmar que
nunca verdadeiramente falhei. Não sei que psicose ou que fracasso se pode
chamar a isto. Mas a cada dor, a cada angústia, esta lâmina entra mais fundo.
Sangrar continuamente, e ter pena dessa dor a que não consigo fugir. Não
poderei ter perdão por ter fugido à tentativa. Um dia imagino poder quebrar o
ciclo. Quando será tarde?
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
Acto de Primavera
Aquele plano final de Acto de Primavera. O branco da amendoeira, o olhar de Manoel de Oliveira percorrendo as flores, por detrás o céu, azul azul. E outras cores, antes: túnicas carmesim, verdes, vermelho de sangue. O azul celeste de Maria. E as sombras de Caravaggio caindo sobre Jesus e os apóstolos, ao fim do dia. A câmara anda por ali, esperando o momento em que o real se transforma em ficção, em sonho. Da leitura de uma notícia mundana nasce, num lento deslizar caímos no sonho, e apenas o notamos quando nele estamos imersos. Somos figurantes de um acto de magia, o realizador leva-nos pela sua mão, e vivemos a vida de Jesus, a sua danação e morte - mas não a ressurreição, essa existe apenas fora de campo, para lá do real que nos ilude, é a flor de amendoeira do plano final.
Homens que cavam a terra são os heróis do contra-campo. Mulheres que seguem os homens na sombra, a raiz que os suporta, a mãe de Deus e a mulher a quem Jesus amou. E colhem o trigo, e carregam aos ombros feixes de feno, e vão buscar água à fonte, pela verdura. A luz que os eleva ao reino dos Céus é a do olhar do homem que sorri para nós logo ao início, Manoel de Oliveira. O acto de Primavera, transfiguração da carne em luz, eternidade. Respira pelo cinema, vive através dele, e habita-nos. Resiste ao tempo.
Caderno de encargos (7)
Amigos, gostava de os ter vivendo a meu lado, como os fantasmas que são. Não aqui em casa, ocupando os lugares por onde me vou esquecendo, mas numa casa ao lado, a dois metros de distância, para que os pudesse convocar sempre que precisasse. Não quando andasse perdido nas tais profundezas de que fala o poeta
(qual poeta? algum fala de profundezas sentindo-as mesmo, o ar tão distante como a palavra está de um surdo-mudo? saberão mesmo o que é cair, sem conhecer o fim à queda? ou fingirão apenas dor, e voz, e sofrimento, deitando sobre o papel a sombra que não guardam?)
não quando andasse tão errado sobre o que me dizem que achasse que cada corredor leva sempre a uma porta. Queria poder chamá-los quando cair fosse um relâmpago que me sacudisse de alto a baixo, uma permanência. E que não encontrasse o fio eléctrico que a sustivesse. Queria poder abrir-lhes a porta de casa, acender a luz como um terremoto e deixá-los entrar no corpo que desabito. E eu fosse um fantasma por momentos, a minha pele cobrindo da cabeça aos pés carne, nervo, músculos. E eu fosse um fantasma e entrasse em casa deles, passeasse pelas salas e descobrisse nas estantes livros de que nunca ouvira falar, títulos novos, filósofos desconhecidos. Que não reconhecesse o cheiro dos meus amigos, nem o eco das vozes abandonadas, nem as fotografias sujas de pó enfeitando a cómoda da sala. Que abrisse a janela do quarto e a luz entrasse, composta de moléculas acabadas de nascer, e no meu corpo de fantasma essas moléculas desenhassem uma alegria antiga.
E depois regressaria a minha casa, e eles à sua. Regressaria sabendo que sempre que precisasse poderia trocar de corpo e voltar, como uma mariposa reencontrando o seu casulo.
domingo, 6 de setembro de 2015
Caderno de encargos (6)
Acabei agora mesmo de escrever um poema. Não apontei a hora, não o fixei ao eixo do tempo. O dia também não. Um poema não precisa de dia nem de hora para estar pronto, julgo eu. Até que volte a pegar nele, está ali, repousando, ganhando corpo. Se for um vinho terá depósito. Se for uma laranja acabará por apodrecer. O verdete cobrirá as suas rugas, e o acre da podridão tomará conta da casa. Ele e os outros, fruta podre no recipiente de plástico, na cozinha. Nada de cristal, nem lugar de honra na casa. Plástico, singelo, a servir de depósito para o poema e para as suas metáforas.
O poema que eu escrevi, regressou a mim depois de eu o ter deixado partir há uns tempos. Soltei-lhe a trela e ele, obediente, voltou e pôs-se a escarafunchar a porta. Chateou-me, o sacaninha, e não aguentei: deixei-o entrar. Apesar de saber que depois de o aceitar ele iria atazanar-me o espírito. Com a sua perfeita inutilidade, com a sua redundância escarninha, com a sua bela superfície espelhada reflectindo a soma negativa que o trouxe ali, ao cano da minha pistola.
E agora que escrevo sobre isso, acrescento humilhação ao caso. Se fosse um detective seguindo uma pista, diria que suficientes indícios desta soma negativa só podem levar a uma conclusão, uma apenas. Mas não. Insisto. Mesmo sem saber como rir, escrevo poemas. Se os poemas fossem vinho, viveria feliz algumas horas. Mas nem isso, não são vinho. São apenas objectos inexistentes com os quais comparo o vinho, material e útil. Não têm corpo, nem cheiro, nem sabor. Não nos atiram para o esquecimento, antes nos puxam do sonho e nos deixam desamparados na realidade, como peixes desprendidos do anzol.
Mas há um verso...
domingo, 28 de junho de 2015
Caderno de encargos (5)
Todos os dias, o sono trazendo a cegueira aos olhos, hesito na saída. Trago às costas o peso do cansaço diário. Julgo no entanto ser o único a ver o que por dentro cresce. O hábito antropológico de encontrar nos olhos dos outros a impossibilidade material, um muro espesso. Nos homens escamas crescem na pele; a carne sólida, as mãos soltas numa insuperável imobilidade, na ausência do álcool. O corpo capturado num movimento violento, a arte da prisão. A sombra irrompe dos olhos e torna-se a roupa suja que cobre o corpo. Não sou como esses homens que vão morrendo do cancro que lhe corrói as entranhas, mas sei que cedo ou tarde a luz se dissipará como uma voz na distância. Não preciso de enfermidades, vícios, tédio e loucura - tenho a modorra quotidiana, plena de razão absurda, como um sol ofuscando os caminhos que conduzem ao esquecimento. Uma membrana húmida alastra pela carne, e num momento tanto sou o fio de água que restou na poça como o fantasma de um pássaro gravado na retina. Atiro-me contra a cerca, na esperança de que a sólida gramática da morte me acorde. Mas o gancho que me puxa de volta ao presente, metafórico e sublime, prende a minha carne ao que não poderei ver. O sono é como um estranho que não deixo entrar em casa. Talvez não me reste mais do que isso: resistir ao imparável embate do tempo.
terça-feira, 16 de junho de 2015
Caderno de encargos (4)
Não falamos do que nos interessa, perdemos o que nos trouxe aqui, as sombras estão presas no passado. Na conversas mentimos mais do que a marca desse rosto no espelho, ou a mancha deixada na mesa pela maçã roída de domingo à tarde, jornais de há três meses que ainda não estão amarelos e ecos de canções na rádio de um tempo antes de nós. Chama-se inventar uma história para caber no coração, ir criando as curvas apertadas que temos a certeza de nos terem trazido aqui. Ou acumular redundâncias numa caixa de cartão que guardamos na prateleira de baixo da mesinha de cabeceira, papeis velhos, recibos amarrotados e os comprimidos que salvámos para aquela ocasião em que o abismo nos olha de volta.
No nosso medo calamos as certezas, mas o cansaço debate-se entre mãos, é uma montanha que não conseguiremos conquistar, nem que a vida durasse o suficiente para aprendermos a arte da escalada, do alpinismo, da poesia. Contra os olhos entregamos o resto de sangue que nos anima. E nas veias um denso arado abre os sulcos por onde há-de escorrer o presente, princípio de bolor e esquecimento.
Não, de todas as palavras possíveis, é a que mais vezes nos aconchega. Uma conta-corrente que vem de muito longe, debitando possibilidades esgotadas, os futuros que arderam sem nunca terem chegado a existir, os que nunca vimos e no entanto viveram dentro de nós com a força suficiente para nos lembrarmos deles, o ímpeto da onda antes de ser cortada pela língua de areia para onde se atira.
Não falamos nunca do que nos interessa, e não interessa saber porquê. Erramos o alvo, sempre, com fulgor e alegria - no intervalo da necessidade, na dobra da razão, habitamos. Sabemos o que somos aí.
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