quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Acto de Primavera


Aquele plano final de Acto de Primavera. O branco da amendoeira, o olhar de Manoel de Oliveira percorrendo as flores, por detrás o céu, azul azul. E outras cores, antes: túnicas carmesim, verdes, vermelho de sangue. O azul celeste de Maria. E as sombras de Caravaggio caindo sobre Jesus e os apóstolos, ao fim do dia. A câmara anda por ali, esperando o momento em que o real se transforma em ficção, em sonho. Da leitura de uma notícia mundana nasce, num lento deslizar caímos no sonho, e apenas o notamos quando nele estamos imersos. Somos figurantes de um acto de magia, o realizador leva-nos pela sua mão, e vivemos a vida de Jesus, a sua danação e morte - mas não a ressurreição, essa existe apenas fora de campo, para lá do real que nos ilude, é a flor de amendoeira do plano final. 
Homens que cavam a terra são os heróis do contra-campo. Mulheres que seguem os homens na sombra, a raiz que os suporta, a mãe de Deus e a mulher a quem Jesus amou. E colhem o trigo, e carregam aos ombros feixes de feno, e vão buscar água à fonte, pela verdura. A luz que os eleva ao reino dos Céus é a do olhar do homem que sorri para nós logo ao início, Manoel de Oliveira. O acto de Primavera, transfiguração da carne em luz, eternidade. Respira pelo cinema, vive através dele, e habita-nos. Resiste ao tempo.