quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Caderno de encargos (12)

Tenho a garganta estrangulada. Deixa-me respirar pelo nariz, traz as aranhas para o nosso ninho, deixa-as tecer as suas teias por cima de nós, para que ao dormir possamos saber que outra vida existe para lá dos nossos sonhos. Não sabes o que trago desse lado, se as aranhas andaram lá comigo. Por vezes eu não sei também. Corrigindo: nunca sei. Nunca sei o que sonho, mesmo quando tento programar os sonhos. Sobretudo quando tento programar os sonhos. Nessas noites vagueio por lugares desconhecidos e os sons da nossa vida não entram nessas ruas, nessas cidades, nesses quartos onde o prazer se troca por dinheiro. Comigo as aranhas brincam, as aranhas respiram, com suas patas finas tecem teias por dentro dos pulmões e unem-nos às paredes húmidas da nossa ultrapassada filosofia. Há no entanto aquele ritmo antigo. Sabes, aquele ritmo sem percussão que se estende desde o primeiro sopro. Aquele ritmo que é apenas melodia, sem toque de tambor ou batuque de coração. Nas ruas dos meus sonhos eu não ouço esse ritmo. Mas sinto. Sinto nas ligamentos tensos pela corrida. Sinto no fole da teia que prende o pulmão esquerdo ou no bofe retesado pelos fios que a aranha pariu no meu pulmão direito. Sinto por dentro dos meus olhos, nos ligamentos que sobem ao cérebro, e nas têmporas que estremecem com todo o conhecimento do mundo. Só nos sonhos conhecemos o mundo, porque a verdade é o reverso da vida, e as aranhas sabem isso. Pobre filosofia a nossa, precisa de aranhas para se validar. Mas são tão breves, tão fulgurantes, apenas elas prendem a luz à morte, quando se perdem nos nossos sonhos. Tenho a garganta estrangulada pelo tempo, aperta cada vez com mais força. As aranhas passeiam-se por mim.