domingo, 6 de setembro de 2015

Caderno de encargos (6)

Acabei agora mesmo de escrever um poema. Não apontei a hora, não o fixei ao eixo do tempo. O dia também não. Um poema não precisa de dia nem de hora para estar pronto, julgo eu. Até que volte a pegar nele, está ali, repousando, ganhando corpo. Se for um vinho terá depósito. Se for uma laranja acabará por apodrecer. O verdete cobrirá as suas rugas, e o acre da podridão tomará conta da casa. Ele e os outros, fruta podre no recipiente de plástico, na cozinha. Nada de cristal, nem lugar de honra na casa. Plástico, singelo, a servir de depósito para o poema e para as suas metáforas. 
O poema que eu escrevi, regressou a mim depois de eu o ter deixado partir há uns tempos. Soltei-lhe a trela e ele, obediente, voltou e pôs-se a escarafunchar a porta. Chateou-me, o sacaninha, e não aguentei: deixei-o entrar. Apesar de saber que depois de o aceitar ele iria atazanar-me o espírito. Com a sua perfeita inutilidade, com a sua redundância escarninha, com a sua bela superfície espelhada reflectindo a soma negativa que o trouxe ali, ao cano da minha pistola. 
E agora que escrevo sobre isso, acrescento humilhação ao caso. Se fosse um detective seguindo uma pista, diria que suficientes indícios desta soma negativa só podem levar a uma conclusão, uma apenas. Mas não. Insisto. Mesmo sem saber como rir, escrevo poemas. Se os poemas fossem vinho, viveria feliz algumas horas. Mas nem isso, não são vinho. São apenas objectos inexistentes com os quais comparo o vinho, material e útil. Não têm corpo, nem cheiro, nem sabor. Não nos atiram para o esquecimento, antes nos puxam do sonho e nos deixam desamparados na realidade, como peixes desprendidos do anzol. 
Mas há um verso...

domingo, 28 de junho de 2015

Caderno de encargos (5)

Todos os dias, o sono trazendo a cegueira aos olhos, hesito na saída. Trago às costas o peso do cansaço diário. Julgo no entanto ser o único a ver o que por dentro cresce. O hábito antropológico de encontrar nos olhos dos outros a impossibilidade material, um muro espesso. Nos homens escamas crescem na pele; a carne sólida, as mãos soltas numa insuperável imobilidade, na ausência do álcool. O corpo capturado num movimento violento, a arte da prisão. A sombra irrompe dos olhos e torna-se a roupa suja que cobre o corpo. Não sou como esses homens que vão morrendo do cancro que lhe corrói as entranhas, mas sei que cedo ou tarde a luz se dissipará como uma voz na distância. Não preciso de enfermidades, vícios, tédio e loucura - tenho a modorra quotidiana, plena de razão absurda, como um sol ofuscando os caminhos que conduzem ao esquecimento. Uma membrana húmida alastra pela carne, e num momento tanto sou o fio de água que restou na poça como o fantasma de um pássaro gravado na retina. Atiro-me contra a cerca, na esperança de que a sólida gramática da morte me acorde. Mas o gancho que me puxa de volta ao presente, metafórico e sublime, prende a minha carne ao que não poderei ver. O sono é como um estranho que não deixo entrar em casa. Talvez não me reste mais do que isso: resistir ao imparável embate do tempo.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Caderno de encargos (4)

Não falamos do que nos interessa, perdemos o que nos trouxe aqui, as sombras estão presas no passado. Na conversas mentimos mais do que a marca desse rosto no espelho, ou a mancha deixada na mesa pela maçã roída de domingo à tarde, jornais de há três meses que ainda não estão amarelos e ecos de canções na rádio de um tempo antes de nós. Chama-se inventar uma história para caber no coração, ir criando as curvas apertadas que temos a certeza de nos terem trazido aqui. Ou acumular redundâncias numa caixa de cartão que guardamos na prateleira de baixo da mesinha de cabeceira, papeis velhos, recibos amarrotados e os comprimidos que salvámos para aquela ocasião em que o abismo nos olha de volta. 
No nosso medo calamos as certezas, mas o cansaço debate-se entre mãos, é uma montanha que não conseguiremos conquistar, nem que a vida durasse o suficiente para aprendermos a arte da escalada, do alpinismo, da poesia. Contra os olhos entregamos o resto de sangue que nos anima. E nas veias um denso arado abre os sulcos por onde há-de escorrer o presente, princípio de bolor e esquecimento.  
Não, de todas as palavras possíveis, é a que mais vezes nos aconchega. Uma conta-corrente que vem de muito longe, debitando possibilidades esgotadas, os futuros que arderam sem nunca terem chegado a existir, os que nunca vimos e no entanto viveram dentro de nós com a força suficiente para nos lembrarmos deles, o ímpeto da onda antes de ser cortada pela língua de areia para onde se atira. 
Não falamos nunca do que nos interessa, e não interessa saber porquê. Erramos o alvo, sempre, com fulgor e alegria - no intervalo da necessidade, na dobra da razão, habitamos. Sabemos o que somos aí.

domingo, 3 de maio de 2015

Poema encontrado no Facebook

Quem regressa a Portugal regressa ao medo
de falar sem alçapões de protecção
conventual, ao respeitinho pelos títulos
de borra, à timidez de protestar nas oficinas,
nos empregos, nos polés, nos hospitais.
Volta ao gozo bichaneiro da franqueza
pelas costas, ao bitate regougado
pela incúria, ao leve gás do palavrão
desopilante, pusilânime, vendado,
ao complacente desamor da liberdade.
Regressar a Portugal é regressar
ao desapego por direitos e deveres,
à indiferença pela história colectiva,
pelo que quer que sobrepuje o cá-se-vai
dum comodismo sem coragem nem prazer.
É regressar a horizontes de betão
e eucalipto, a frustrados atoleiros
de automóveis à deriva, ao fanico
de salários sobrevivos, mordaçantes,
ao cajado da lisonja e da preguiça.
Quem regressa a Portugal, regressa ao tempo,
sobretudo, da infância, que o lugar
já foi levado (não me canso de o dizer,
nem me conformo) pelo tufão da mais-valia
predial. Mas se o tempo da infância
cabe inteiro na memória, quem regressa
a Portugal, regressa a quê e para quê?

José Miguel Silva, in Erros Individuais, ed. Relógio d'Água 

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Caderno de encargos (3)

Essa permanência de que falam os cientistas. A nova invenção: não existe tempo. Nem passado, aquilo em que julgamos acreditar, nem futuro, o que não pode ser conhecido. Apenas presente, fluindo e fugindo, caindo entre os dedos, imagem que não conseguimos fixar, chama trémula que não agarramos, mas queima. Aqui estou admitindo que o que me trouxe aqui não passa de uma ficção - agora, aqui estou eu afirmando que o que acabei de dizer não existe, ou que apenas existe por força de uma crença, tão absurda como em qualquer deus. Absurda, sim, mas não inútil. Esta crença que é a plasticina que molda o mundo, lhe dá consistência, e permite aceitar que os cientistas digam que todas as memórias que, com a força de uma torrente de primavera, me assoberbam o espírito, não existem. Porque o passado é feito de memória, se o tempo existe já não o conseguimos aceder, mas se não existe o que aconteceu não passou de um sonho. Um sonho: pensando bem, nele não existe o tempo; nem passado, nem futuro, apenas presente fluindo. Portanto, do que os cientistas falam é de um sonho, não da vida. Essa permanência que esvazia de sentido todo o gesto, toda a acção, todo o pensamento. 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Todos os que estão mortos

Quando um homem conhece outro homem
Procura-o
Não se esconde.

Não espera 
Por mais uma noite 
Com a mulher
Nem quer voltar a deitar as crianças.

Veste uma camisa lavada e um fato escuro
E vai ao barbeiro
Deixar que outro homem o barbeie.

Ele fecha os olhos,
Lembra-se de quando era um rapaz
Deitado nu numa rocha à beira da água.

Depois pede a loção especial.
Os velhos aproximam-se da cadeira
E o barbeiro deita um pouco
Em cada uma das mãos.

Frank Stanford, versão minha.

domingo, 22 de março de 2015

Caderno de encargos (memento)

Um dia fora de tudo o que me interessa. Um dia rodeado de livros mas sem pensar no que eles guardam – ou carregam. Escolhi a vida que tenho por subtracção, não por soma. Fui descontando ao desígnio as oportunidades, deixando que as opções se esbatessem antes que tivesse a possibilidade de verdadeiramente escolher. Não me posso queixar do que tenho; talvez não tenha nada de que me possa vir a arrepender. Mas essa desilusão, esse desencanto, essa permanente dor surda que me deixa de sobreaviso, esperando o que não pode ser esperado, acabando por nunca acontecer. Mais do que medo, um medo de que algum dia submeta ao vazio as horas que me foram dadas viver. E que acabe por perder no confronto as alegrias, subtis e efémeras, as que apenas se reconhecem quando se recorre à memória. E volto ao mesmo, a ferramenta que impele a escrita, quando à razão submetemos o julgamento das emoções, do que fomos sentindo, até chegarmos ao ponto em que apenas as palavras podem definir de forma nítida essa brevidade de uma sensação. A memória sobrevive, e talvez apenas ela nos permita continuar a fazer. Li que o mecanismo que nos permite prever o futuro é semelhante ao que nos faz recordar. Lembrar como se soubesse o que a manhã me trará, pensar no que serei apenas divisando o que agora sou, na impossibilidade de imaginar um outro. Um regresso à noite e a tudo o que me interessa. Algum consolo. Ausência de mim, e do corpo.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Caderno de encargos (arte poética 1)

O que nos chega aos olhos, e é processado, transforma-se no que nunca foi: pasto de palavras, metáforas que reduzem a cinza a matéria e o sonho, máquina produtora de redundâncias.
O que é está além do olhar que o vê, existe apenas fora do mundo e das palavras que o constroem. Há portanto três planos distintos, três camadas de realidade, e sabemos que nenhuma delas é real, nem material. O que vemos é tão tangível como o que pensamos, e o que pensamos é tão furtivo como o que dizemos. E depois decidimos dizer por outras palavras, como se, digamos, fossem duas estrelas de neutrões sugando tudo em volta, e no centro da sua dança pulsasse um vazio centrífugo por onde escoa a realidade. O escrito habita nesse plano intermédio, a zona atómica onde duas folhas de árvore intersectam a luz enganadora, vive na rocha onde assentam os pés, o lugar no qual começa a nascer a verdade, o que satisfatoriamente substitui a realidade.

quarta-feira, 11 de março de 2015

Felicidade suburbana

A noite próxima, quando a gente chega a casa, cai uma calma sobre o bairro que limpa as ruas e os espíritos. Não falo de silêncio, nem de sono, mas de uma serenidade habitada pelos ruídos do costume, pelos hábitos diários e as urgências da necessidade. O pão que é preciso comprar na loja da esquina, ir buscar os filhos à escola, preparar o jantar de janela aberta, o cheiro a refogado enchendo os ares. As conversas de quem encontra o vizinho e precisa de alimentar os laços e as ilusões de proximidade enquanto se vai afastando, recuando, recolhendo ao engano do lar. O ronco dos carros a serem estacionados, o barulho dos pratos e das chávenas no café da esquina, o vento trazendo pela janela o odor distante de fumo que vem das vivendas. 
Há medos que espreitam, como sempre, todos os dias, todos os medos emboscados no caminho, e os poucos segundos que se transformam em minutos, minutos imersos nessa proximidade quotidiana e fingida, são as bóias que nos mantêm à tona. Nadamos entre escolhos, e vamos ao encontro de quem nos reconhece, mesmo que não saiba o nosso nome, nem de que sonhos somos feitos. Entre escolhos, resgatando connosco a verdade que vamos fabricando, chegamos a ilhas que não aparecem no mapa. 
A noite empurra o dia para o passado. Somos como um velho disco riscado, de cada vez que tocamos mais ruído de fundo produzimos. Mas as mãos que retiram o disco da capa, que puxam a agulha e a deitam devagar sobre os sulcos, as mãos, reconhecemos nelas o que somos, o seu cheiro, a pele porosa por onde se infiltra o amor. A mesma canção tocada tantas vezes, e nunca nos cansamos dela. Talvez um dia o bairro faça sentido. Cá dentro, a isso nos conduz, um sonho de quem nunca encontrou o lugar certo para dormir.