sábado, 7 de março de 2015

Caderno de encargos (1)

O que fazer com um morto? O que fazer com as suas mãos, os seus olhos, os seus gritos? O que fazer com o seu corpo, para além de escondê-lo do mundo? Levá-lo a passear, mostrar-lhe as vistas? Pegar nas suas memórias e revirá-las, transformá-las no sonho que nunca se chegou a ter? Ou abrir-lhe o ventre, com a lâmina exacta, e expor-lhe as entranhas, como um peixe na lota? Escondemos a elegância do desaparecimento como se esconde guloseimas às crianças, sabendo que as crianças, mais cedo ou mais tarde, as irão encontrar. Porque o desaparecimento consiste em estar ali sabendo que o vazio que ocupará o lugar do corpo arde no horizonte, um devastador incêndio. Tão devastador que queima o presente e as suas ilusões, as suas certezas com sabor de algodão doce.
O que fazer com a voz de um morto, a que nos canta na noite as canções que recusamos ouvir? Julgamos saber que a música é um eco do que em tempos conhecemos, mas na verdade é apenas um sopro de sereia que conduz o barco em direcção aos penhascos. A música que nos chega dos mortos, as histórias que nos cantam, brilham com o cheiro da urze que renasce todas as primaveras nos montes. Mas depois apagamos as recordações como se fossem as linhas escritas a lápis no caderno de infância. E nas aparas de borracha vive o que vivemos, partículas que se desfazem na ponta dos dedos, transportadas na concha das mãos e atiradas para o lixo. E depois são recolhidas pelos homens que limpam as ruas pela noite.
As mãos de um morto, os dedos certos um dia, agora são galhos secos encolhidos na sua respiração. Pele sobre ossos, nódulos de carne ainda, sangue acumulado sob as unhas, brilhando na sombra de um dia. Traçando uma linha longitudinal do alto da cabeça ao vértice dos pés pousados no aço gelado, e abrindo, rasgando, escavando, vê-se o que se viu, o que se perdeu e o que não mais poderá ser visto. O rasgo rescinde da cabeça aos pés, e por ele se infiltram os caminhos desviados, as hesitações de percurso, os ódios acumulados como fuligem no coração, as trapaças de amor onde a alegria caía, os pedaços de papel com todos os nomes que não puderam ser carregados para a morte, as fisgas que o medo usou para derrubar uma e outra vez, vezes sem conta, o ar que em cada queda foi insuflado no corpo e a luz a cada manhã recolhida apontando o dia, a velocidade e o movimento impelido por ela, contra a inércia a impulsão, como um arco sobre o mundo. Com o sangue vai tudo, tudo o que apenas o morto lembra e agora já não lembra,
e alguém por ele o mata outra vez. Não sabemos o que fazer com a nossa imagem no futuro. E não reconhecemos no presente suficiente força no reflexo que nos olha de volta para nele fixarmos o eixo do abismo que ali está, a um passo apenas. Fazemos com um morto o que não podemos fazer por nós: esquecemos.