segunda-feira, 2 de maio de 2016

Caderno de encargos (11)

Não depende de ti acordares, e de cada vez que o fazes é como se uma membrana densa te envolvesse e não te deixasse respirar plenamente, empurrando-te de volta para o sono. Mas resistes a essa força invisível, e tentas com toda a tua vontade mover um braço, uma perna, estender os músculos, permitir que a sua função se cumpra, assentar os pés no chão, palmas duras no chão frio, e caminhar, aos tombos, em direcção à casa de banho. Mas depois voltas, não chegaste a sair da cama, o movimento é descendente mas sentes que trepas um penhasco vertical preso de finos fios, sem a ajuda de cordas nem de grampos, mãos procurando tenazmente segurar-se a cada saliência, reentrância, planta seca rompendo da rocha. O esforço é de tal modo violento que todas as veias do teu corpo se empertigam, sangue golfando, e o sangue cai das mãos, a pele rasgada pelo gume das pedras. 
Toda a violência é no entanto intrínseca, vive em ti, não existe fora do modo como te pensas. Quem te olha de fora apenas vislumbra um corpo desistindo de si próprio, vacilante, sem nada que o anime. Ou então vê apenas a banalidade diária, repetida, a cada dia repetida sem memória do anterior, como se viver não fosse mais do que a soma dos momentos em que se existe solto de si próprio. 
Seja qual for a medida dos outros, serás sempre diferente do que imaginam que és. Uma identidade difusa, a cada momento procurando concentrar-se em si mesma, e a cada momento diluindo-se como açúcar em água, tão perdida no mundo como absolutamente consciente de si, e da sua permanência quebrada, um vaso partido que nenhuma cola poderá voltar a unir. 
Não depende de ti acordar, mas acontece, sem qualquer sombra de resistência. Focar a consciência nesse segundo escapando-se será talvez a tua última derrota. Mas disso dependes como da luz para ver. Ou será que vendo mais fundo nas sombras descobres o reverso de ti próprio, rompendo o abismo, comum rebento trazendo a Primavera?