sábado, 17 de outubro de 2015

De pão e de certeza e do rumor do mar

De pão e de certeza e do rumor do mar

(quando chega o Inverno)

precisamos tanto quanto
do outro estamos famintos
e se no início do dia trocamos
o gesto exacto pela incerteza
do que julgamos saber
ou do que pensamos perder
quando apostamos na derrota
na queda a que chamo
a geometria decifrada do teu corpo
números secretos conquisto
e das águas tiro um rosto,
ao qual dedico mãos pés a linha cinza
do coração, entregue em tempos
a quem não a percebia,
a fronteira de penumbra, território
devastado, rasto de ruína
digno do esquecimento dos mortos
que tu, apenas tu, poderás retomar,
com o teu exército feito do claro

sol de um novo dia.

Caderno de encargos (8)

A dificuldade não é começar. É continuar. Começar e continuar. Persistir até que comece a fazer sentido, aguentar até que comece a surgir alguma forma da coisa caótica e desprovida de sentido que dá início a tudo. Mas o cansaço surge demasiado rápido. Não me ensinaram a esticar até ao limite as cordas do tecido, a fiar no vazio, sem perceber a partir da trama o resultado a que se irá chegar um dia. E eu nunca aprendi, nem talvez tenha querido a aprender, a fazer mais do que tentar. Admitir que este será talvez o meu maior defeito é dizer pouco. Talvez até nada dizer, sobretudo porque quem me conhece deverá saber quais os piores defeitos. A dificuldade é não continuar e a cada tentativa falhar. E retirar consolo do falhanço, ou pior, de nem tentar. Se nunca chegar ao fim do esforço, da tentativa, posso afirmar que nunca verdadeiramente falhei. Não sei que psicose ou que fracasso se pode chamar a isto. Mas a cada dor, a cada angústia, esta lâmina entra mais fundo. Sangrar continuamente, e ter pena dessa dor a que não consigo fugir. Não poderei ter perdão por ter fugido à tentativa. Um dia imagino poder quebrar o ciclo. Quando será tarde?

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Acto de Primavera


Aquele plano final de Acto de Primavera. O branco da amendoeira, o olhar de Manoel de Oliveira percorrendo as flores, por detrás o céu, azul azul. E outras cores, antes: túnicas carmesim, verdes, vermelho de sangue. O azul celeste de Maria. E as sombras de Caravaggio caindo sobre Jesus e os apóstolos, ao fim do dia. A câmara anda por ali, esperando o momento em que o real se transforma em ficção, em sonho. Da leitura de uma notícia mundana nasce, num lento deslizar caímos no sonho, e apenas o notamos quando nele estamos imersos. Somos figurantes de um acto de magia, o realizador leva-nos pela sua mão, e vivemos a vida de Jesus, a sua danação e morte - mas não a ressurreição, essa existe apenas fora de campo, para lá do real que nos ilude, é a flor de amendoeira do plano final. 
Homens que cavam a terra são os heróis do contra-campo. Mulheres que seguem os homens na sombra, a raiz que os suporta, a mãe de Deus e a mulher a quem Jesus amou. E colhem o trigo, e carregam aos ombros feixes de feno, e vão buscar água à fonte, pela verdura. A luz que os eleva ao reino dos Céus é a do olhar do homem que sorri para nós logo ao início, Manoel de Oliveira. O acto de Primavera, transfiguração da carne em luz, eternidade. Respira pelo cinema, vive através dele, e habita-nos. Resiste ao tempo.

Caderno de encargos (7)


Amigos, gostava de os ter vivendo a meu lado, como os fantasmas que são. Não aqui em casa, ocupando os lugares por onde me vou esquecendo, mas numa casa ao lado, a dois metros de distância, para que os pudesse convocar sempre que precisasse. Não quando andasse perdido nas tais profundezas de que fala o poeta 
(qual poeta? algum fala de profundezas sentindo-as mesmo, o ar tão distante como a palavra está de um surdo-mudo? saberão mesmo o que é cair, sem conhecer o fim à queda? ou fingirão apenas dor, e voz, e sofrimento, deitando sobre o papel a sombra que não guardam?)
não quando andasse tão errado sobre o que me dizem que achasse que cada corredor leva sempre a uma porta. Queria poder chamá-los quando cair fosse um relâmpago que me sacudisse de alto a baixo, uma permanência. E que não encontrasse o fio eléctrico que a sustivesse. Queria poder abrir-lhes a porta de casa, acender a luz como um terremoto e deixá-los entrar no corpo que desabito. E eu fosse um fantasma por momentos, a minha pele cobrindo da cabeça aos pés carne, nervo, músculos. E eu fosse um fantasma e entrasse em casa deles, passeasse pelas salas e descobrisse nas estantes livros de que nunca ouvira falar, títulos novos, filósofos desconhecidos. Que não reconhecesse o cheiro dos meus amigos, nem o eco das vozes abandonadas, nem as fotografias sujas de pó enfeitando a cómoda da sala. Que abrisse a janela do quarto e a luz entrasse, composta de moléculas acabadas de nascer, e no meu corpo de fantasma essas moléculas desenhassem uma alegria antiga.
E depois regressaria a minha casa, e eles à sua. Regressaria sabendo que sempre que precisasse poderia trocar de corpo e voltar, como uma mariposa reencontrando o seu casulo.